This paper was presented at the Global Investigative Journalism Conference in October 2013 in Rio De Janeiro as part of Papers on Investigative and Data Journalism.
Investigative journalism and the specifics of crime coverage of a murder in Jornal de Santa Catarina
By Rosemeri Laurindo & Eliane Pereira
Abstract (translated)
Based on the analysis of the crime coverage of the murder of Elfy Eggert, a young ‘Blumenauense’ (someone from Blumenau) from Santa Catarina, this article discusses the need to follow specific procedures when reporting about crime. This need is reflected in the research that is part of the everyday life of the journalist, particularly in the city of Blumenau, a city in Southern Brazil with approximately 300,000 inhabitants. The research confirms that there are gaps in the knowledge of the peculiarities of police reports, as exemplified in the case of the death of civil servant Elfy Eggert. There have been two years of material and consequences of the fact, which resulted in the conviction of the accused as complicit to the crime through evidence. The research involved 127 texts.
Jornalismo investigativo e as especificidades da cobertura policial sobre um assassinato no Jornal de Santa Catarina
Resumo
Com base na análise da cobertura policial feita sobre o assassinato de Elfy Eggert, jovem blumenauense de Santa Catarina, o presente artigo problematiza a necessidade de procedimentos específicos para o acompanhamento jornalístico a respeito de crimes. Reflete-se sobre a investigação que faz parte do dia a dia do jornalista, em particular na cidade de Blumenau, com aproximadamente 300 mil habitantes no Sul do Brasil. Verificam-se lacunas quanto ao conhecimento das particularidades de ocorrências policiais, observando-se o caso da morte de uma servidora pública, Elfy Eggert. Foram dois anos de matérias e repercussão do fato, que culminou na condenação dos acusados como coautores do crime, através de indícios. A pesquisa envolveu 127 textos.
Palavras-chave: Jornalismo Investigativo; Cobertura Policial
Eliane Pereira: Jornalista pelo Instituto Blumenauense de Ensino Superior.
Roseméri Laurindo: Pós-doutoranda na Cátedra Unesco de Comunicação para o Desenvolvimento Regional, junto à Umesp, com bolsa do CNPq. Professora da Universidade Regional de Blumenau.
Introdução
Devido ao excesso de informação, algumas categorias, gêneros e técnicas da comunicação social, acabam se confundindo. O jornalismo avoluma-se com releases, informações sem verificação, prazos cada vez mais apertados para o fechamento da matéria, obsessão no furo jornalístico, informações em plataformas digitais sem a devida apuração, que geram especulações, entre outras situações, que fazem parte da rotina na atual conjuntura jornalística. Quando o assunto em foco envolve crimes, os problemas parecem ganhar maior dimensão. Setor de alta periculosidade, a cobertura de crimes exige um conhecimento preliminar sobre as rotinas policiais e as práticas criminosas. O repórter que conhece as leis, os procedimentos mínimos de uma investigação jornalística, por vezes, pode até contribuir para solucionar ou embotar o caso.
O Jornal de Santa Catarina é o veículo de comunicação selecionado para a discussão, pela abrangência que tem na região de Blumenau e pela facilidade de acesso aos arquivos, disponibilizados pela empresa. O crime em pauta teve grande repercussão. Trata-se do assassinato de Elfy Eggert, no dia 3 de julho de 2006, quando tinha 36 anos. Um crime repleto de mistérios, que resultou na condenação dos acusados diante de indícios e vestígios que a Polícia Civil apurou, provando-se que houve a intenção de matar, mas sem as provas concretas que apontassem quem, realmente, praticou o estrangulamento da jovem.
A pesquisa mostra, através da análise de 127 textos jornalísticos coletados no Jornal de Santa Catarina que o noticiário policial informou a comunidade por meio de elementos repassados por fontes oficiais (delegado, polícia civil, advogados), criminosos, suspeitos, família e amigos próximos à vítima. Assim, a investigação jornalística deu-se sobre os relatos dos fatos pelas fontes e não sobre os fatos em si, sobre os quais se dependia das versões.
O último encontro
A blumenauense Elfy Eggert nasceu em 11 de fevereiro de 1970, trabalhou durante 18 anos na Divisão de Promoções Culturais da Universidade Regional de. Ela foi assassinada e encontrada pela vizinha, Tereza Kraieski Reis, às 16 horas, do dia 4 de julho de 2006, ao lado da cama, na própria casa, localizada à Rua Carmela Sevegnani Dalpiaz, número 27, no bairro Água Verde, em Blumenau. Os acusados, e condenados em 2008 como coautores do estrangulamento, foram o marido Julio Cesar Sary e um amigo em comum do casal, Ricardo Soares Rodrigues.
Na segunda-feira, 3 de julho faltavam quatro dias para o Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau. Naquele dia fez as unhas, arrumou o cabelo, foi à casa da mãe almoçar, beijou-a. Sentou no banquinho de madeira ao lado da mesa da cozinha e acarinhou a sua cachorra, uma pug, a Peggy. Ela trabalhava na divisão de cultura da mesma faculdade em que se graduou em artes plásticas. Elfy cuidava da organização e da montagem dos eventos culturais da universidade e, ainda, fazia os contatos com os artistas. Era responsável pela infraestrutura de materiais e equipamentos do Festival Teatro. Estava num momento especial da vida: com o marido pensavam em adotar uma criança, uma menina. Já tinha até o nome: Bárbara.
Depois do almoço, despediu-se da mãe, do padrasto, de Peggy e foi para o trabalho. Não sabia que seria o último dia em que almoçaria com a família, o último com seus colegas. E que, neste ano, não estaria presente no evento de que tanto gostava.
Terça-feira, quatro e quinze da tarde, a vizinha Tereza subiu alguns degraus da escada que a levaria à porta de entrada da casa de Elfy. Acionou o alarme. Estava desligado. Com a cópia da chave nas mãos foi em direção à porta, que estava semiaberta. Parou. Por um momento prestou atenção na claridade que reluzia dos vidros, no brilho do sol de fim de tarde que se refletia em direção à cortina branca, fechada. Abriu um pouco mais a porta e chamou: “Elfy, fofa?!”. Ninguém respondeu. Ela perguntou mais uma vez… “Elfynha, tu tais em casa, querida? Tu tais doente que não foi trabalhar? E não foi me avisar nem nada?!”. Foi entrando. Dentro da casa, por conta do blecaute, estava escuro. Foi acendendo as luzes e andou pelo corredor em direção ao quarto de Elfy. Quando chegou, viu um vulto caído perto da cama, de lado, percebeu as mãos juntas, um cobertor, as pontas dos pés e um cabelo loiro molhado, esparramado pelo chão. Pensou que Elfy havia caído da cama e desmaiado. Puxou o cobertor e pronunciou “Elfy!Elfy,Elfy!! Tu desmaiou, fala comigo! Levanta!”. Mas quando colocou a mão no rosto da amiga o encontrou gelado, inchado, um roxo nos olhos. E gritou “Filha, tu morreu!?”. Olhou rapidamente ao redor, tudo bagunçado, roupa jogada, cobertor, telefone pendurado até o chão, celular piscando debaixo da cama.
Elfy sempre saia de casa à tarde com o Fox vermelho. O marido, Julio, é quem saia cedo para o trabalho, num Corsa branco. Algumas vezes dava carona para Tereza. Elfy dormia até perto do meio dia, pois trabalhava até às dez da noite na FURB e aproveitava o restante da noite para fazer os serviços de casa, lavar roupa, cuidar da Peggy. Naquele dia, logo cedo, a vizinha estranhou que o carro da amiga não estava na garagem. “Vai ver… saiu mais cedo hoje”, pensou. Só que de tarde a mãe de Elfy telefonou e comentou que a filha havia viajado no fim de semana, mas voltou no domingo, e se preocupava, pois Elfy estava passando por umas crises de desmaio. E os colegas de trabalho, também, ligaram perguntando por que ela não foi trabalhar. “E o Julio?”, perguntou D. Tereza. “Ele foi viajar, ontem!” respondeu a mãe de Elfy, que pediu a vizinha averiguar se a filha estava em casa. Depois daquele dia Tereza Kraieski Reis teve depressão e só conseguiu recuperar-se tempos depois
com ajuda religiosa.
Acusados e condenados
Os dois acusados deixaram rastros do envolvimento na morte. O ponto de partida da investigação foi uma carta (encontrada no carro do marido Julio Sary enviada por Ricardo Soares Rodrigues) escrita à mão com uma oração e uma caixa dos correios, contendo um animal morto e ameaças de morte. Depois vieram contradições nos depoimentos dos acusados, o mistério da porta da casa aberta à chave na noite do crime e quatro apólices de seguro de vida, no valor de R$ 846 mil, que teriam motivado Sary a planejar a morte da esposa. Assim, os indiciados foram a julgamento, dois anos depois do crime, no dia 12 de novembro de 2008 e condenados como coautores do assassinato já que nenhum dos dois assumiu a culpa pela morte.
Na madrugada de 13 de agosto de 2008, o marido de Elfy Eggert, Julio Cezar Sary, foi condenado por homicídio triplamente qualificado. Sary formou-se em 2003 em Sistemas de Informação pela Associação Educacional Leonardo da Vinci. Os professores o classificavam como um aluno inteligente e calmo. Tempos depois retornou à faculdade para ministrar uma palestra sobre empreendedorismo. Era um homem ambicioso. Recebeu a sentença de 20 anos de reclusão em regime fechado e, por fraude processual3 mais seis meses de detenção e multa. Ele ficou preso de 17 de julho de 2006 a 14 de setembro de 2011 na Penitenciária de Curitibanos (SC) e depois recebeu direito a prisão albergue (semi-aberta).
O outro acusado, Ricardo Soares Rodrigues, também foi condenado por homicídio triplamente qualificado e sentenciado a 18 anos de reclusão em regime fechado e, por fraude processual mais sete meses de detenção e multa. Preso desde 18 de julho de 2006, estava na Penitenciária de São Pedro de Alcântara (SC) de onde saiu no dia 28 de julho de 2011 para regime albergue sem recolhimento.
Apesar dos acusados terem sido condenados e presos e já em liberdade condicional, ainda não ficou esclarecido quem foi o responsável pela morte de Elfy Eggert. Em 2013 isso ainda permeia a mente de muitas pessoas em Blumenau.
Jornalismo investigativo
De acordo com o Instituto Verificador de Circulação (IVC), em 2010 o Jornal de Santa Catarina figurou entre os 50 jornais de maior tiragem do Brasil. De Santa Catarina, o Diário Catarinense ficou em 26° lugar com 41.962; a Hora de Santa Catarina em 37°, com 30.525; a Notícia em 45°, com 23.788 e o Jornal de Santa Catarina em 48° lugar, com a circulação média de 19.402 mil exemplares, entre janeiro a dezembro de 2010. Todos pertencem ao Grupo Rede Brasil Sul de Comunicações (RBS). Na região do Médio Vale do Itajaí, onde Blumenau fica localizada, o meio impresso que se destaca é o Jornal de Santa Catarina, que começou a circular em 22 de setembro de 1971. Em 1° de setembro de 1992 a empresa catarinense foi comprada pela RBS. Em setembro de 2004, o Jornal de Santa Catarina deixou sua forma standard e passou a circular em formato tablóide. Durante os anos anteriores os demais veículos da RBS já haviam passado por este processo, sendo o Jornal de Santa Catarina o único da rede ainda no 3 Fraude processual: malícia praticada durante o desenvolvimento do processo. Consiste em inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou perito – artigo 347 do Código Penal.
Formato antigo
Segundo dados do Ibope de setembro de 2008 o número de leitores do Santa corresponde a 252.321 habitantes na região, presente em 54 municípios dos Alto e Médio Vale do Itajaí, Vales do Rio Tijucas e Litoral Centro-Norte Catarinense. Além de artigos, colunas e charges, o Santa compreende editorias de Economia, Esportes, Geral, Informe, Lazer, Opinião, Política e desde 2007 a de Segurança. As matérias policiais eram publicadas na editoria de Geral e passaram para Segurança.
Conforme Kotscho (2004, p.34) “o ramo de reportagem mais difícil e, talvez por isso mesmo, o mais fascinante é o das chamadas matérias investigativas”, onde, conforme o autor, o repórter procura “descobrir e contar para o mundo aquilo que se está querendo esconder da opinião pública”. Há várias formas de se contar uma história, e não existem fórmulas secretas no jornalismo, especialmente na reportagem, “cada história é uma história e merece um tratamento único.”. Nesse contexto caberia considerar cobertura de casos complexos, como os policiais.
O jornalismo investigativo é a prática da reportagem mais aprofundada, responsável por desvendar mistérios e fatos ocultos do conhecimento geral das pessoas. Casos de crimes, corrupção, prostituição de menores, misteriosos assassinatos que podem virar notícia. Segundo o jornalista Leandro Fortes, o jornalismo investigativo pode soar redundante, pois todo ele deveria partir do princípio da investigação. “De fato, até o surgimento das facilidades das ferramentas eletrônicas de buscas, toda apuração, por mais simples que fosse, tomava ares de investigação” (Fortes. 2005, p.9).
O jornalismo investigativo é complexo, trabalhoso e pode ser perigoso, para Kunczik (2002, p.17) “o trabalho jornalístico genuíno, de investigação, de redação e de edição, praticamente já não existe na atualidade. Não raro os jornalistas, graças ao seu bom desempenho, são promovidos a postos onde já não podem utilizar suas habilidades jornalísticas.”.
Marcelo Beraba, ombusdsman da Folha de São Paulo em 2004, e ex-presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), afirma que o jornalismo investigativo é uma busca obsessiva por documentos e provas e “tornou-se uma qualificação específica para as reportagens de mais fôlego […] Aquela que exige mais tempo e paciência para pesquisas, entrevistas, observação direta, checagem e re-checagem.” (apud Fortes, 2005, p.10). Já Sequeira (2005, p.15) entende que o jornalismo investigativo é uma categoria diferenciada na linha jornalística: “diferenciada […] pelo processo de trabalho dos profissionais, obrigados a lançar mão de metodologias e estratégias nada ortodoxas, com as quais os jornalistas de atualidade nem sonham em trabalhar”.
Segundo Fortes (2005, p.35) o que diferencia o jornalismo investigativo das demais categorias são as circunstâncias mais complexas dos fatos, extensão da notícia e o tempo de duração. Ele sistematiza as seguintes fases: pesquisa minuciosa de cada detalhe dos fatos: “Uma dica importante, nesses casos, é fugir das fontes oficiais e óbvias. […] O olho do repórter é que vai descobrir por entre qual brecha se pode chegar à notícia.”, Fortes (2005, p.35); paciência e concentração: todo o material recolhido deve ser analisado com muita atenção. Fortes aponta que “uma boa investigação é demorada e, recheada de documentos, dados, estatísticas, legislações e códigos de onde se tira o extrato necessário para a notícia”; insistência e perseverança: “algumas coisas “cheiram” a notícia, sobretudo as que são deliberadamente ocultadas por autoridades públicas.” Fortes lembra que a informação enviada por assessores de imprensa deve ser checada com cuidado, pois normalmente são construídas para proteger o assessorado; atenção especial a todo tipo de documentação, como relatórios anuais de empresas, certidões, registros de imóveis, contratos, tudo que possa agregar e trazer informações; muitas entrevistas: gravar e arquivar em local seguro. Pode acontecer de um entrevistado dizer que não “falou nada” sobre determinado assunto. Fortes (2005, p.38) menciona que “quanto mais poderoso é o entrevistado, mais vulnerável se torna o repórter; conhecimento policial básico: conforme o autor, esse tipo de cobertura, a policial, não deve ser feita apenas com conhecimento de mundo. Segundo Fortes (2005, p.38)
É de grande valia entender alguma coisa sobre investigação policial, seleção de pistas, análise, análise de provas e indícios. Significa dizer que o repórter deve prestar atenção tanto às informações oficiais como àquelas que ele mesmo irá, obrigatoriamente, coletar durante a apuração.[…] Faz, por exemplo, com que o jornalista passe a trabalhar sobre hipóteses plausíveis e aprenda a se safar de falsas pistas e manipulações de fontes inescrupulosas.
Curiosidade e desconfiança: esses dois elementos estão na alma do bom jornalista investigativo. Segundo Fortes, quanto mais pesado o assunto, mais curioso e desconfiado deve ser o repórter. ‘A curiosidade é o que leva o homem a olhar o buraco escuro no chão. A desconfiança é o que impede de meter a mão sem antes pesquisar o que tem dentro; discrição: conforme Fortes (2005, p.40): “o jornalista investigativo deve, na medida do possível, caminhar pela sombra, ser pouco conhecido, não se deixar fotografar, falar o mínimo possível ao telefone (para evitar grampos) e manter uma relação estritamente profissional com as fontes”; checar: faz parte do bom jornalismo, sobretudo quando se trata de notícia sensível, abortar uma reportagem, por mais doloroso que seja, se ela tem falhas ou incongruências apresentadas na apuração. (Fortes, 2005, p.40); sem preconceitos: não partir de princípios pessoais, religiosos e ideológicos rumo a uma apuração; arquivos bem organizados; frieza, objetividade e precisão: “Aquele político ladrão, aquele pastor safado, aquele padre pedófilo, aquele juiz corrupto, toda essa gente horrível […] é fonte inesgotável de notícia, principalmente quando se fala de jornalismo investigativo. O segredo para desmascará-los não está em partir para cima deles como um cão raivoso. É tratá-los, na medida do possível, com respeito”; lealdade ao leitor; coragem e responsabilidade: Fortes (2005, p.42) anota que: grandes interesses, corporações poderosas, crime organizado, policiais corruptos, querem ver qualquer coisa na frente, menos um jornalista abelhudo. […] Enfrentar essas máfias é um ato de grandeza profissional, mas se entregar a isso de qualquer jeito é a maneira mais fácil de se meter em encrenca”; respeito às fontes: uma das ”razões da longevidade dos bons repórteres, principalmente os que cobrem as áreas policiais e militares.”; clareza e simplicidade: “para que o resultado de uma apuração tão trabalhosa como a de uma investigação jornalística não termine em um emaranhado de nomes, números, vocábulos e expressões ininteligíveis.” (Fortes, 2005, p. 43).
O jornalista Felipe Pena (2006, p.202), esclarece que: “jornalismo investigativo não se baseia [só] em denúncias, apenas começa com elas. A base mesmo é uma sólida pesquisa por parte do repórter.” Segundo o autor, o jornalismo investigativo é uma das formas mais eficazes que a imprensa tem para se aproximar do exercício de cidadania.
Cobertura policial
O delegado Waldir César Padilha, 47 anos, estava no centro de Blumenau, onde recebeu a ligação de que uma mulher havia cometido suicídio no bairro da Velha. Quando isso acontece a perícia é a primeira a chegar ao local. Mas, em seguida, policiais ligaram novamente para informar que a mulher não se matou, pois as mãos e os pés estavam amarrados. Logo em seguida ele e mais agentes de sua equipe chegam à casa de Elfy. Fazem a investigação preliminar, acompanham a perícia, conversam com os vizinhos, parentes, com a mãe, que chegou logo depois, e com policiais militares que chegaram antes. Verificam que a casa está toda desarrumada, dando a impressão de ser roubo. O delegado, por telefone, levanta informações sobre Elfy e sobre o marido que estava viajando.
O fato da cachorra ter sido presa dentro do banheiro chamou atenção do delegado. “Que bandido se preocuparia em deixar a cachorrinha presa lá?”, pensa alto. O fato de a vítima estar com uma coberta por cima do corpo também intriga. “Normalmente indica que o crime foi feito por alguém conhecido. Acontece em crimes passionais; depois de matar o autor cobre a vítima”, explicou posteriormente.
O delegado Padilha e sua equipe foram ao velório de Elfy. Ele fez questão de ir para conhecer Julio Cesar Sary e, logo, à primeira impressão, percebeu algo de errado na expressão do marido de Elfy. “Calmo demais”, revelou. Sary estava vestido de terno preto e camisa amarela e ficou até o último instante ao lado da esposa. Ajudou a carregar o caixão até o túmulo, em silêncio.
A cobertura jornalística sobre o crime restringiu-se ao que foi relatado pelos policiais. Em caso de crimes, na maioria das vezes os jornalistas temem sofrer represálias pelos criminosos também de policiais corruptos. As instituições que podem gerar os fatos são as polícias, os presídios, tribunais de justiça, ministério público, segurança publica, ONGS e sociedade. As pautas vão desde assaltos, roubos, sequestros, tráficos de drogas, apreensões, estelionatos, até assassinatos. Segundo Cardia: No caso das coberturas jornalísticas relacionadas à violência, uma coisa é certa: seja o veículo impresso ou eletrônico, em geral há uma carência de melhor qualificação dos repórteres envolvidos – um problema bastante relacionado à falta de espaço para reflexão nas Faculdades de Comunicação. Ao exercer a profissão, o jornalista reproduz a velha prática de tratar o fenômeno a partir do fato violento em si, desconsiderando as causas e o contexto. O quadro tende a ser mais problemático nas redações que mantêm a figura do repórter policial ou nas chamadas editorias de polícia. Normalmente, esses profissionais dependem muito de fontes policiais, já que consideram central para seu trabalho os furos de reportagem.
A complexidade da especialização da cobertura policial gerou inclusive um “Manual do Repórter de Polícia” – livro digital – escrito pelo jornalista Marco Antônio Zanfra4, que descreve as principais informações que o repórter precisa saber para cobrir um caso, desde “aborto” à “violência doméstica”. Segundo Zanfra (2009, p.5): 4 Zanfra, Marco Antônio, nasceu em São Paulo, capital, em abril de 1956, o autor formou-se em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero (SP), em 1977. Nesse mesmo ano, começou a exercer a profissão, como repórter policial da Agência Folhas de Notícias, do Grupo Folhas. Em quase 30 anos de carreira, foi repórter, redator, editor, chefe de redação e assessor de imprensa. Durante 15 anos trabalhou exclusivamente na editoria de polícia.
A falta de informações a respeito de assuntos que envolvam o jornalismo policial era a conseqüência lógica da condenação ao desaparecimento que essa área de reportagem recebeu a partir do final da década de 70. Antigamente, os repórteres de polícia eram formados nas próprias redações, numa espécie de transmissão oral de tradições e conhecimentos. Hoje, até jornais que centravam sua pauta na cobertura criminal ou desapareceram ou renegaram publicamente suas origens.
O manual, de Zanfra (2009) fala sobre um pouco de tudo de que o repórter de cobertura policial necessita saber para cobrir uma notícia, desde armas, Justiça e julgamento, Medicina Legal, leis e artigos, perícias criminais, homicídios, crimes hediondos.
Um dos fatores fundamentais para o aprofundamento do trabalho do repórter policial são as fontes: humanas, documentais, eletrônicas. Conforme Pena (2006, p.62) as fontes oficiais são: Governo, institutos, empresas, associações e demais organizações, “entretanto, se a pessoa que fala por elas não está autorizada, então a fonte é oficiosa.” O autor afirma que “quando a fonte não tem nenhum vínculo direto com o assunto em questão, trata-se de uma fonte independente.”.
Outra categoria, segundo Pena (2006, p.64) é a fonte testemunhal, “como o próprio nome diz, ela não tem relação direta com o fato, já que é sua testemunha.”, e há de se levar em conta que o relato deste está ligado ao seu conhecimento de mundo, cultura e opinião própria. Há também fontes primárias como, por exemplo, soldados e moradores de uma determinada cidade em guerra. E fontes secundárias como o caso de cientistas políticos e analistas militares.
Manter uma boa relação com as fontes é de extrema importância, mas não há que se ter ingenuidade. Lage (2007, p.62) aconselha: “preserve suas fontes, mas não se submeta a elas. Quem é jornalista é você; a fonte, mesmo que seja um sábio na sua especialidade, é um amador em jornalismo. Mas, em caso de dúvida sobre um dado, volte à fonte e pergunte.”.
Pena reforça que as fontes podem manipular o jornalista e interferir nos meios de comunicação. Ele não se refere apenas às assessorias de imprensa ou a outras empresas especializadas em divulgação, pois lembra que “uma fonte oficial pode divulgar determinada notícia para amenizar o impacto de outra, que deseja ocultar.” (Pena, 2006, p.61).
Leitura
A leitura de obras literárias desenvolve a sensibilidade do jornalista, tornando-se um recurso fundamental para o aprimoramento dos relatos policiais. A jornalista Sandra Moura (2007, p.82), no livro Caco Barcellos – o Repórter e o Método -, comenta as preferências do jornalista e a influência deles em seu texto:
(…) o autor de Por Quem os sinos dobram está entre os seus escritores favoritos. […] o livro Abusado: o dono do morro Dona Marta, de Caco Barcellos, lançado em 2003, está dividido em três partes que carregam justamente os nomes Tempos de Viver, Tempo de Morrer e Adeus às armas, em homenagem às obras de Hemingway. […] Dos outros autores consagrados, o seu interesse maior está voltado mesmo para John Reed, Jack London, Frederick Forsyth e os expoentes do chamado new journalism. Tem afeição por Truman Capote e mais ainda por Gay Talese, de quem diz ter influência marcante.
Já Cremilda Medina no livro “Povo e Personagem” (1996, p.215) resume a importância da leitura na vida do repórter da seguinte forma: “só um jornalista exposto à sensibilidade, racionalidade e ações criativas precípuas ao artista, poderá, ele próprio, se aperfeiçoar para conviver mais complexamente com o real imediato.”. Para Medina, “acima de tudo, a literatura ajuda o jornalismo a que este se torne mais humano”.
A investigação
Na manhã seguinte ao primeiro dia da chegada ao local do crime, o delegado Padilha e sua equipe encontram o Corsa branco do marido de Elfy abandonado próximo à rodoviária de Blumenau. Dentro do carro encontram uma carta, manuscrita em folhas de caderno, com suposta mensagem de suposto aconselhamento espiritual ao casal, com menção a um nome de homem. A carta apresenta erros de ortografia, acentuação, pontuação.
O laudo do Instituto Médico Legal não deixa dúvidas: Elfy Eggert, 36 anos, cabelos loiros, olhos castanhos, um metro e sessenta e dois centímetros de altura, pesando
aproximadamente quarenta e nove quilos, foi estrangulada e morreu por asfixia, entre 23 e 24 horas do dia 3 de julho.
Procedimentos da pesquisa
Realizou-se levantamento da cobertura sobre o caso no Jornal de Santa Catarina, que gerou 127 arquivos pdf’s , datados entre 5 de julho de 2006 , quando saiu a manchete com a morte da blumenauense, até 22 de novembro de 2008, com o julgamento dos acusados. Os principais repórteres que fizeram a cobertura, gerando um total de 39 matérias assinadas foram Cleisi Soares (3), Daniela Pereira (1), Isabela Kiesel (25), Mariana Furlan (1), Rafael do Prado (7) e Sicilia Vechi (2).
Para interpretação dos dados considerou-se separação entre gêneros jornalísticos, editorias e fontes. No início da pesquisa houve a intenção de saber se houve investigação por parte dos jornalistas do Santa ou se a cobertura policial não mereceria tal qualificativo. Poderíamos fazer diferença? Influenciaria alguma coisa no caso de se assumir jornalismo investigativo?
Através das leituras e pesquisas sobre o tema foram separados os gêneros principais, informativo e opinativo, depois a editoria do jornal onde constavam as matérias relacionadas ao caso. Montou-se uma planilha com data (da matéria), página (localização no jornal); título (do material); repórter (quem assinou a matéria); classificação dos gêneros e respectivos formatos (no informativo: nota, notícia, reportagem, entrevista; no opinativo: comentário, artigo, caricatura, carta). E ainda identificação da editoria, capa, contracapa, informe, geral, segurança, opinião, lazer; finalizando com as fontes (separadas pelas expressões segundo a fonte tal, conforme a fonte, registradas nas matérias).
Alguns dados levantados: 122 unidades informativas (59 notas, 33 notícias, 24 reportagens, 6 entrevistas), 5 unidades opinativas (1 comentário, 2 artigos, 1 caricatura, 1 carta). Pela quantidade, observa-se que 96% é de gênero informativo (que informa e distingue as diferenças nas informações) e 4% é de gênero opinativo (identidades diversas a partir da autoria e angulagem de uma matéria veiculada, com manifesta opinião). Isto significa que o material informou mais do que opinou, uma característica de cobertura policial, que se restringe, em geral, ao relato do evento criminal.
O valor absoluto das inserções no gênero opinativo demonstra que durante o período de dois anos e quatro meses de informação repassada aos leitores foi pouca a repercussão do fato criminal. Por exemplo, uma única carta do leitor foi divulgada durante esse tempo, na página 3 do jornal, no dia 15 de novembro de 2008, quando os acusados já haviam sido sentenciados.
Isabela Kiesel, formada em jornalismo pela Universidade Vale do Itajaí foi a repórter com maior número de matérias assinadas, entre notícias, reportagem e entrevistas sobre o caso. Acompanhou de perto o desenrolar do crime e só não esteve presente no julgamento, que aconteceu em novembro de 2008, porque tinha cirurgia marcada. No período a repórter foi promovida a editora de política do jornal, mais tarde veio a trabalhar como editora assistente na Revista Época Online, em São Paulo.
As fontes
A análise do material recolhido no Jornal de Santa Catarina permitiu verificar a quantidade de fontes que foram usados na construção informativa. Considerando 31 notícias, 15 reportagens e seis entrevistas, foram localizadas um total de 53 fontes, sendo que 45 delas eram oficiais – governo, institutos, empresas, associações e demais organizações – neste caso Polícia Civil, promotor de justiça, advogados – e sete extraoficiais (família da vítima e acusados). Das fontes oficiais, 16 estão diretamente ligadas a Polícia Civil. Ou seja, 87% são oficiais. A partir do momento em que o repórter se limita apenas ao uso de fontes oficiais o termo investigação, em jornalismo, ficaria descaracterizado. Checar é uma coisa, investigar é outra.
Considerações
Quanto aos procedimentos jornalísticos na cobertura policial do caso Elfy Eggert, o Jornal de Santa Catarina informou aos leitores sobre o crime a partir de fontes oficiais. O jornalismo investigativo, por outro lado, requer práticas mais aprofundadas. No caso policial seria relevante, como contraponto à própria investigação policial, questionar as evidências policiais, lembrando-se que cobrir um fato e narrá-lo faz parte da função do jornalista também.
A pesquisa analisou o conteúdo jornalístico sobre o caso Elfy Eggert para permitir reflexões sobre aproximações do jornalismo investigativo com a própria investigação policial. A cobertura do caso foi baseada praticamente nas informações que a Polícia Civil repassou aos repórteres. Viu-se com Lage (2007) que preservar a fonte, buscar e checar informações através delas, não significa ser refém dela. O jornalista investigativo deve ir além.
Através da pesquisa fica evidente a necessidade de especialização de investigação policial para repórteres de geral e segurança, como também um maior aperfeiçoamento nas técnicas de jornalismo investigativo.
Como questão verificada em aberto na presente pesquisa, destaca-se que no dia 11 de dezembro de 2007 foi feita a exumação do corpo de Elfy, para recolha de amostra de resíduos em baixo da unha e dentes, porque havia evidências de que ela teria lutado contra o seu assassino. O resultado do DNA, que saiu seis meses depois, deu negativo para os dois acusados. Se no jornalismo, que tem como base a investigação, houvesse um repórter com conhecimento das técnicas investigativas policiais, seria o caso de chamar atenção para essa coleta na hora em que o corpo foi encontrado? O resultado poderia ter sido outro. E o fato de dar negativo, não reposicionaria a investigação?
No caso blumenauense houve detalhes que escaparam da polícia e do jornalismo. Os acusados foram condenados, mas no inquérito policial surgiu a hipótese de uma terceira pessoa5 ter participado do crime, que não ficou esclarecido. Julio Cesar Sary e Ricardo Soares Rodrigues foram condenados como coautores e não como autores.
É por conta de detalhes tão importantes como este, que fica em aberto em Blumenau, apesar de a Justiça ter cumprido sua função, que é importante estimular especialização de repórteres que se dediquem à cobertura policial com aprofundamento, técnico, científico, humano, legal, enfim, habilidades de um jornalismo investigativo.
Apesar de não haver nenhuma prova concreta, os acusados do crime foram condenados, através de indícios averiguados no inquérito policial, onde foi constatado que houve a trama e a intenção de matar a vítima. Eles foram sentenciados, em 2008, a 20 e a 16 anos de prisão respectivamente, mas por serem réus primários, e pelo bom comportamento no presídio, já estão em liberdade condicional. Voltam ao convívio com a comunidade em menos de seis anos de prisão. Esta mesma comunidade que ainda permanece na dúvida: “quem será que matou Elfy Eggert?”. A mesma pergunta que tantas vezes foi impressa no Jornal de Santa Catarina.
Referências
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