This paper was presented at the Global Investigative Journalism Conference in October 2013 in Rio De Janeiro.
The Concept of Ethics and the Production of Journalism in Technological Times
By Edgard Patricio
Abstract (translated)
Technology is an ally for investigative reporting during procedures of verifying information. But the use of technology raises discussions about the ethical dimension of these procedures . Take, for example, the last update of the Code of Ethics of the Brazilian Journalists, which occurred in 2007 and was motivated by the specific discussion on the use of hidden cameras as an artifact in journalistic investigation. Could the use of new technologies in the production process of journalism influence the concept of ethics of journalists? To try to answer this question, we interviewed 15 professional journalists operating in the labor market of Fortaleza. The 15 respondents are representative of the various media (print, radio, television , multimedia ) and different occupations ( reporters , editors , newsroom managers ). The wide age range of the professional journalists invited to give their testimonies also contributed to the possibility to perceive transformations of the relationship between ethics and professional practice of journalism over time. For this article, we analyze the statements from the perspective of understanding the journalists have about the concept of ethics. The paper develops a reflection on ethics and the practice of journalism from changes in production conditions of this professional practice, based on the analysis of 15 interviews. For this discussion, on the production of journalism , its relationship with the technology and the concept of ethics, we rely upon ABRAMO (1988 ) , BUCCI (2000 ) , CHRISTOFOLETTI (2003 ) and Karam (2004 ) . The results of the analysis indicate an overlap between the concepts of ethics and morality, the perception of professional journalists, and the emergence of new ethical dilemmas represented by ownership, by journalism and new communication technologies in their production process.
O conceito de ética e a produção do Jornalismo em tempos de tecnologia
Edgard Patrício[1]
Resumo
O jornalismo investigativo tem na tecnologia uma aliada durante os procedimentos de apuração das informações. Mas essa aproximação levanta discussões quanto à dimensão ética dos procedimentos utilizados. Basta lembrar que a última atualização do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros ocorreu em 2007, e foi motivada pela discussão específica sobre a utilização da câmara oculta enquanto artefato no processo de investigação jornalística. A utilização das novas tecnologias no processo de produção do Jornalismo estaria influenciando o conceito de ética dos jornalistas? Para tentar responder a essa pergunta, entrevistamos 15 profissionais jornalistas com atuação no mercado de trabalho de Fortaleza. Os profissionais entrevistados são representativos das diversas linguagens (impresso, rádio, televisão, multimídia) e de diferentes ocupações (repórteres, editores, diretores de redação). As diferentes faixas etárias dos profissionais jornalistas convidados a dar seus depoimentos também contribuíram para que pudessem ser percebidas as transformações da relação entre ética e prática profissional do Jornalismo ao longo do tempo. Para esse artigo, fazemos um recorte dos depoimentos sob a perspectiva da compreensão dos jornalistas sobre o conceito de ética. O artigo desenvolve uma reflexão sobre ética e prática do Jornalismo a partir das transformações das condições de produção do seu exercício profissional, tomando por base a análise das 15 entrevistas realizadas. Para essa discussão, sobre a produção do Jornalismo, sua relação com as tecnologias e o conceito de ética, nos apoiamos em ABRAMO (1988), BUCCI (2000), CHRISTOFOLETTI (2003) e KARAM (2004). Os resultados das análises apontam para uma sobreposição entre os conceitos de ética e moral, na percepção dos profissionais jornalistas; e o surgimento de novos dilemas éticos representados pela apropriação, pelo Jornalismo, das novas tecnologias da comunicação em seu processo de produção.
Palavras-chave: Jornalismo, tecnologia, ética.
1 A ética, o Jornalismo e a formação do jornalista
A problemática da ética no Jornalismo não é assunto recente. Mas com certeza essa pauta se pôs mais em evidência a partir das transformações que vêm sofrendo o processo de produção do Jornalismo, aí inserido o ambiente das tecnologias da comunicação. Como as transformações na produção do Jornalismo repercutem na dimensão ética do exercício da profissão? Como as tecnologias impõem outras condicionantes éticas à produção do Jornalismo? E como os profissionais jornalistas estão percebendo essas relações?
Durante o ano de 2011, o curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará, por meio da disciplina Éticas e Práticas Jornalísticas, realizou uma série de entrevistas envolvendo 15 profissionais jornalistas com atuação no mercado de trabalho de Fortaleza. Os profissionais convidados eram representativos das diversas linguagens (impresso, rádio, televisão, multimídia), de diferentes ocupações (repórteres, editores, diretores de redação, diretores de empresa, professores), de diferentes locais de trabalho (empresas de comunicação, empresas de assessoria, universidades) e de diferentes faixas etárias.
Os depoimentos, colhidos a partir de entrevistas coletivas realizadas pelos estudantes da disciplina, tiveram, em média, três horas de duração cada. Os roteiros das entrevistas, preparados em reuniões prévias, sinalizavam para questionamentos relacionados à relação entre ética e responsabilidade social do jornalista; a aproximação entre ética e demanda pela informação de interesse público; a ética na dimensão da empresa jornalística, enquanto vinculada a um serviço público; a relação entre ética, tecnologia e Jornalismo; os mecanismos de acompanhamento e julgamento dos deslizes éticos cometidos por profissionais jornalistas; o papel da formação acadêmica na preparação do jornalista para o exercício ético da profissão.
Além desses questionamentos, os profissionais jornalistas foram instados a socializar, com os estudantes, os dilemas éticos que vivenciaram ou vivenciam em sua prática profissional de produção do Jornalismo. Em relação a esse último aspecto, as diferentes faixas etárias dos profissionais jornalistas convidados a dar seus depoimentos contribuíram para que pudessem ser percebidas as transformações da relação entre ética e prática profissional do Jornalismo ao longo do tempo.
2 Uma estratégia de discussão sobre ética e o exercício profissional do jornalista
A disciplina Éticas e Práticas do Jornalismo é ofertada, na matriz curricular atual do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará, no 8º semestre. Esse fato cria dificuldades para os professores que ministram a disciplina. Nesse semestre, último da matriz curricular regular, os estudantes na quase totalidade estão no mercado de trabalho, seja como estagiários remunerados, seja como profissionais desviados de função, mas no exercício do Jornalismo. E ainda têm pela frente a tarefa de elaborar seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), concretizado na elaboração de uma monografia ou de um trabalho prático.
Em que essa situação repercute na proposta didática da disciplina? Inicialmente, ela deve atender aos requisitos de seu programa, que apontam para uma intersecção entre teoria e prática do Jornalismo. E, necessariamente, ela tem que contemplar essas especificidades, de uma turma de jornalistas em formação do último semestre de seu Curso. Nesse caso, a proposta desenvolvida a partir do semestre 2011.1, quando assumi a disciplina, fez uma tentativa de desenvolver uma didática que ‘aproveitasse’ essas características.
Parti do pressuposto de que a proposta didática deveria ser orientada para minimizar o esforço dos estudantes, frente às tarefas que têm que assumir nesse semestre do Curso. Além disso, possibilitar que o exercício profissional, já praticado por eles, pudesse ser ‘trazido’ para a sala de aula, favorecendo a relação entre teoria e prática a que se propõe a disciplina. E que a discussão, ao mesmo tempo, pudesse fazer uma aproximação entre formação acadêmica e mercado de trabalho, uma vez que os estudantes receberiam seu diploma de jornalistas ao final daquele semestre.
Propus aos estudantes que pudéssemos realizar uma série de entrevistas com profissionais do mercado de trabalho em que a relação entre ética e exercício profissional pudesse ser explicitada. E que os profissionais pudessem explicitar, nesse diálogo, os dilemas éticos que vivenciaram em sua trajetória no mercado de trabalho. A turma aceitou a proposta, imagino que percebendo a aproximação entre exercício profissional e a dimensão ética, que talvez já tivessem se defrontado enquanto participantes do mercado de trabalho; e, com certeza, pelo menor esforço que representaria desenvolver a disciplina, sem trabalhos ou provas.
A didática da disciplina comportava a indicação dos profissionais jornalistas a serem entrevistados pelos próprios estudantes –alguns nomes de entrevistados recaíram sobre ‘colegas’ do mercado de trabalho. Selecionados os nomes, a turma era dividida em equipes. Cada equipe ficava responsável pelo levantamento das informações da atuação daquele profissional, a produção de um roteiro básico de entrevistas e a elaboração de um perfil jornalístico do profissional. Todas essas informações eram socializadas para o restante da turma que fazia suas considerações sobre o material coletado. Na aula seguinte, realizávamos a entrevista e fazíamos uma avaliação da ‘performance’ do entrevistado e da turma, já em preparação à entrevista seguinte.
Todos os profissionais foram alertados para o fato de que as entrevistas, em sua íntegra ou editadas, poderiam fazer parte de uma publicação, como um dos resultados da disciplina. Mas, em razão das autorizações não terem sido coletadas de modo formal, e do que poderia representar as opiniões desses profissionais em suas relações de trabalho, optamos por não citar seus nomes. As falas de cada um dos profissionais entrevistados serão indicadas, nesse artigo, a partir de números. Mas descrevemos sua atuação profissional, à época da realização de sua entrevista, para que se tenha ideia da diversidade alcançada pelos participantes.
Entrevistado |
Ocupação |
01 |
Chefe de redação de TV |
02 |
Professor universitário da área de Comunicação Social |
03 |
Repórter de jornal impresso |
04 |
Editor de imagens de jornal impresso |
05 |
Colunista de jornal impresso e blog |
06 |
Coordenador de um informativo digital apócrifo que analisa a atuação da imprensa cearense |
07 |
Sócio de uma empresa de assessoria de comunicação |
08 |
Comentarista de um jornal de TV e colunista de jornal impresso |
09 |
Cronista esportivo de rádio, TV e impresso |
10 |
Assessor de comunicação de uma instituição pública |
11 |
Apresentadora e repórter de TV |
12 |
Professor universitário da área de Comunicação Social |
13 |
Editora de jornal impresso |
14 |
Repórter de jornal impresso |
15 |
Editora de um portal de notícias |
3 O conceito de ética e a produção do Jornalismo
Os códigos de ética de atuação profissional sofrem atualizações ao longo do tempo. Esse é um movimento que atesta uma adequação da conduta ética profissional às transformações sociais. Os códigos de ética são “definidos, revistos e promulgados a partir da realidade social de cada época e de cada país”, conforme Camargo (2004, p. 34), embora ressalte que “suas linhas mestras”, porém, são “deduzidas de princípios perenes e universais”. Camargo (Idem, p. 32) ainda compreende que A ética profissional é a aplicação da ética geral no campo das atividades profissionais; a pessoa tem que estar imbuída de certos princípios ou valores próprios do ser humano para vivê-los nas suas atividades de trabalho. De um lado, ela exige a deontologia, isto é, o estudo dos deveres específicos que orientam o agir humano no seu campo profissional; de outro lado, exige a diciologia, isto é, o estudo dos direitos que a pessoa tem ao exercer suas atividades.
A última revisão do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros aconteceu em 2007, depois de 20 anos da última atualização. Um dos aspectos que ‘forçou’ a atualização do Código foi a crescente utilização do procedimento da câmara escondida para produção de matérias de natureza mais investigativa.
Especificamente para esse artigo, vou me deter na discussão sobre o conceito de ética, e suas relações, às vezes sobreposição, para alguns, com o conceito de moral. Ao tentarmos relacionar ética e exercício profissional do Jornalismo, a partir das entrevistas, essa não foi uma discussão que pautou originalmente os roteiros de perguntas elaborados. Nossa percepção é que o atrelamento ao conceito poderia significar uma inibição à fala dos entrevistados. Mas, espontaneamente, os profissionais jornalistas teceram considerações livres sobre os dois conceitos, e os utilizaram a partir de sua própria compreensão.
Ao se fazer a análise das entrevistas, percebe-se as relações que se estabelecem entre ética e produção do Jornalismo. Essas relações são mediadas por determinadas categorias, pelas quais se concretiza o ato jornalístico perpassado pela ética, ou por seu abandono. Seriam as dimensões por onde se insinua essa relação. Uma dessas dimensões é aquela que se concentra na preocupação do conceito de ética, pelo jornalista, para explicitar sua preocupação em seguir seus preceitos ou a tentativa de identificar o deslize ético. Outra dimensão seria a negação do conceito de objetividade, pela própria empresa jornalística, que força o profissional jornalista ao deslize ético. A identificação de quando a ética perpassa a produção do Jornalismo é explícita quando os entrevistados são instados a relatar seus procedimentos jornalísticos à luz do conceito de ética que defendem. Essa seria mais uma dimensão. Outra, seria a relação que se estabelece entre formação acadêmica, produção do Jornalismo e ética. Por fim, haveria uma dimensão que parte da tecnologia que interfere na relação entre produção do Jornalismo e ética. É a primeira dimensão, a percepção do conceito de ética e sua relação com a produção do Jornalismo, que vamos analisar aqui.
3.1 Ética e moral
O profissional 10 já exerceu, em momentos distintos, as funções de assessor de imprensa de um governo e de um sindicato de trabalhadores. É nessa conjuntura concreta que ele faz a distinção entre ética e moral.
O pessoal diz: ‘Porque fulano de tal é muito ético’. O que é ser muito ético? Eu compreendo que ética é uma compreensão das diversas morais. Então o Paulo torce Ceará, eu torço Fortaleza. Ele tem uma opinião sobre meu time e eu tenho uma opinião sobre o time dele. A torcida do Ceará pode ter uma moral específica dentro de um espaço, assim como a torcida do Fortaleza pode ter também. A gente pode ter opiniões divergentes sobre várias coisas e leituras morais diferentes. A grande tarefa da ética é compreender porque que o Paulo pensa assim, porque que o profissional 10 pensa assado. E tirar a melhor conclusão. Não dá para você dizer que fulano de tal é um cara muito ético. Eu não gosto desse tipo de terminologia.
A partir dessa compreensão, é natural para o profissional 10 o jornalista assumir diversas morais, em diferentes situações. Ele cita, categoricamente, duas posturas diferenciadas de um mesmo jornalista. Quando trabalha numa campanha eleitoral e quando trabalha na assessoria de comunicação de um órgão público. E assume que as condicionantes de postura podem ser ilimitadas. E o sentido universal que a compreensão ética tenta abarcar nessas morais específicas.
Na verdade, eu te diria [que existe] uma moral diferente para cada um dos papéis. A ética vai tentar compreender cada uma delas. Cada espaço tem uma moral diferente. A máfia tem uma moral. Aquele cara que foi morto porque dedurou… Aquilo foi feito porque, na cabeça deles, era o mais correto a se fazer. Quando um jogador, no campo de futebol, está no chão e a bola está com o time adversário, a torcida e os demais jogadores esperam que, gentilmente, coloquem a bola para fora. Isso não está escrito em regra alguma, é uma postura moral que se exige pelo costume. Cada setor tem uma moral diferenciada.
Mas já para o profissional 2, há uma superposição na compreensão do que seja ética e moral. E isso principalmente pelas condicionantes culturais que atravessam o trabalho do jornalista. Sua percepção sobre essa relação fica explícita quando é levado a se posicionar se a ética de um jornalista brasileiro poderia ser distinta da ética de um jornalista iraniano. É enfático.
Condicionada pela cultura, pode, com certeza! Há coisas que nós temos como aceitáveis que eles [iranianos] consideram como ofensivas. O jornalismo vai tratar das relações afetivas, políticas… Como ele vai tratar sobre isso sem respeitar a cultura de como os povos se comportam diante das diversas situações? A liberdade tem que respeitar a cultura! Um correspondente para dar certo tem que entender a língua do povo e a cultura do povo.
Para além da variável cultural, mas também de forma intrínseca a ela relacionada, a moral do jornalista também sofre as consequências da sua condição social. A leitura de mundo, e, depois, a produção narrativa desse mundo, vai incorporar essa outra condicionante. Como explicita o profissional 10, quando critica a cobertura da mídia sobre a gestão governamental para a qual trabalha.
Nós, jornalistas, geralmente somos pessoas de classe média, ou classe média baixa ou classe média alta, enfim. Eu estou me incluindo aqui. Existem quatro pontos de investimento maciço da gestão. Educação, saúde, habitação e transporte. Eu falei de habitação e transporte. E educação também. Nós, boa parte de nós, a classe média, de onde sai a maioria dos jornalistas, não andamos de ônibus, não temos filhos em escola pública, não moramos em área de risco, não frequentamos postos de saúde. Isso desvirtua o nível de cobertura. Eu não tenho a menor dúvida disso.
O que se observa é que as colocações feitas pelos profissionais jornalistas instauram uma dualidade, uma visão antagônica entre pensamento e ação, na determinação do que seja ética e moral. Mas essa não seria uma dúvida só dos jornalistas. Costa (2009, p. 20) nos relata que, embora “para o filósofo alemão Hegel a eticidade e a moralidade fossem sinônimos, para Kant a eticidade seria superior à moralidade. A eticidade estaria no âmbito do público, mais universal; e a moralidade no âmbito particular e subjetivo”. É Boff (2009, p. 37) quem lança parâmetros para a resolução desse antagonismo.
A ética é parte da Filosofia. Estatui princípios e valores que orientam pessoas e sociedades. A moral é a parte da vida concreta. Trata da prática real das pessoas que se expressam por costumes, hábitos e valores culturalmente estabelecidos. Uma pessoa é moral quando age em conformidade com os costumes e valores consagrados. Uma pessoa é ética quando se orienta por princípios e convicções. Uma pessoa pode ser moral, mas não necessariamente ética.
Ora, mesmo costumes e valores consagrados podem ser alterados. Para isso, as transformações culturais jogam um peso decisivo. Essas possíveis transformações estariam na base da necessidade da atualização dos códigos de ética das diversas categorias profissionais. O código de ética referente ao médico brasileiro, por exemplo, estatui que sua revisão deva ser realizada, obrigatoriamente, a cada cinco anos. Nesse caso, e como foi o caso da última revisão do código de ética do jornalista brasileiro, as atualizações podem ser resultantes do avanço das técnicas e descobertas científicas que perpassam a atividade dos profissionais.
Mas a própria fragmentação do conhecimento pode ter levado a essa estratificação da ética profissional. Novamente Boff (p. 42), ao afirmar que sendo “os entes ilimitados, ilimitados também são os saberes. Mas (a razão) esquece-se que são partes de um todo. Realidade fragmentada, gerou saber fragmentado e ética fragmentada em infindas morais, para cada profissão (deontologia), para cada classe e para cada cultura”.
3.2 Ética universal e ética do Jornalismo
Outra discussão que se coloca quando se discute ética no Jornalismo é se os princípios que regem uma ética profissional são os mesmos que orientam uma ética pretensamente universal. Mais que uma nova polêmica, isso traz relação com a discussão anterior, sobre distinção entre ética e moral. No entanto, outro âmbito transparece nesse aspecto, o que orienta a atuação do profissional jornalista em diferentes ambientes de trabalho, o que se torna ilustrativo em nosso diálogo. A profissional 13 tem uma posição firme sobre isso. “A ética você traz da sua pessoa. Você pode trabalhar na mesma empresa, na mesma redação, de alguém que é ‘um picareta’. É muito daquilo que você acredita, aquilo que você é.” O profissional 1 corrobora com esse posicionamento. “Os valores éticos que nós levamos para o jornalismo são os valores éticos das nossas vidas. Se nós somos antiéticos na nossa vida pessoal, não temos valores na nossa vida pessoal, fatalmente não vamos ter valores ou ética no tratamento do Jornalismo.”
Na defesa de uma mesma ética entre o jornalista e o cidadão, são comuns os exemplos ‘trazidos de casa’ pelos profissionais, o que determina valores permanentes, ou princípios éticos duradouros. E como esses mesmos exemplos podem ser aplicados em situações de produção do Jornalismo. Como narra o profissional 3, não sem antes defender a reciprocidade entre ética profissional e ética do cidadão.
Assim, eu penso que a ética do jornalista está ligada a ética do cidadão que a gente é, certo? Desde que a gente foi forjado, foi fomentado lá na casa da gente até o tempinho que a gente ainda tá por aqui. Então, essa ética que eu carrego, essa ética que você carrega, ela tá ligada a sua ética de cidadão. A mamãe, a gente chegava em casa com uma borracha que a gente tinha encontrado na carteira, primeiro a gente apanhava, eu não acho que seja a solução pra essa história. E outra coisa que ela mandava a gente devolver, não sabia de quem era, entregasse a professora. Na entrelinha, ela tava me dizendo lá ‘não é seu, se não é seu, não pegue, não bote a cara nessa história aqui’. Isso é besteira? Pode até ser, mas a gente carrega até perto de morrer, então essa minha ética de jornalista está ligada a essa minha ética de cidadão. A gente tava discutindo no jornal, o uso do site, aquele que diz todas as blitz, a Lei Seca Fortaleza. Pô, aquilo ali tá burlando uma história, acham lindo. Tem blitz não sei aonde, vamos beber e vamos lá pelo outro lado. Isso é ético? Eu estou burlando uma lei. ‘Ah, mas isso é uma besteira’, mas são essas besteirinhas que vão nos tornando menos éticos. Aí daqui a pouco a gente tá recebendo alguma história, daqui a pouco a gente tá fazendo as trocas. Não sou um jornalista bandido, não seria um jornalista bandido, não sou um cara bandido. Eu estou sujeito à justiça comum, como já respondi a vários processos, dentro de matérias que foram feitas no jornal, não escapei, foi comprovado que as matérias estavam corretas.
Dimensão valorizada também pelo profissional 8.
Eu sou filho de classe média. Meus pais eram funcionários públicos. O meu pai era fazendário. Ele me contava que tinha um colega já bem idoso que era fiscal e quando ele ia fazer alguma autuação às vezes, o cara que estava sendo autuado queria emprestar uma caneta pra ele. Então ele dizia: ‘Não, eu estou lhe autuando. Eu não quero de você nem uma caneta’. O cara era de um padrão de honestidade. E eu fui formado assim, não tenho como desagregar. É claro que tem os conceitos, a formação política que a gente acaba tendo aqui dentro da universidade. Tem a própria formação no dia-dia da redação. Você vai convivendo um uma pluralidade imensa de relações. Isso é uma coisa brutal. Tem gente que se incomoda muito com o meio ambiente, e tem gente que não interessa se o cara derrubou centenas de árvores ali na esquina da Avenida Desembargador Moreira com a Avenida Santos Dumont. Então, tem essas coisas que você vai aprendendo. Eu acho que os meus princípios éticos são os da atividade jornalística e eles são, na verdade, de todos. Você tem de ser honesto, tem de ser correto, direto, leal.
Essa pessoalidade na percepção da ética é discutida por Christofoletti (2008, p. 16 e 17), ao identificar também sua dimensão social. Na dimensão individual da ética, “são mobilizados os valores pessoais, cultivados pelo indivíduo, suas convicções morais”. Na segunda dimensão, a social, “operam os valores que absorvemos dos grupos sociais que frequentamos, manifestam-se as vontades e julgamentos coletivos”. Ora, se a ética diz respeito, em ambas as dimensões, a valores, estaria sepultada a ideia de uma ética universal? Ao mesmo tempo, se os coletivos são compostos de indivíduos, como seria possível separar a dimensão individual e coletiva da ética, sem valorar o conceito de ética, aqui colocado? Como se pensar numa ética individual se os valores morais só se realizam na dinâmica grupal, nas relações e mediações sociais?
Mas a dinâmica da produção jornalística impõe situações em que a convicção do jornalista sofre abalos. São os chamados dilemas éticos, em que uma ética forjada ao longo de toda uma vida titubeia, frente a momentos específicos da atuação profissional, muitas vezes relacionados ao exercício do Jornalismo em campos ideologicamente distintos. Para o profissional 7, que trabalha numa empresa de assessoria de comunicação, essa é uma questão resolvida.
A gente tem a possibilidade de dar uma colaboração positiva para a sociedade através dos nossos clientes, através de quem a gente atende, das pessoas com quem a gente trabalha. Para isso, a gente precisa realmente se fincar em profissionalismo e em ética. Ética é aquela velha historia do [jornalista] Cláudio Abramo: ética do jornalista é a ética do marceneiro. Não tem a ética aqui, a ética assim, a ética assado. O comportamento ético da gente é ter prazer conosco, é uma coisa que é inerente, que a gente tem que trabalhar, uma construção constante com a qual a gente é confrontado em determinados momentos. Não existe a ocasião de estar em casa e ligar o botão ‘on’ e ‘off’. Você é um conjunto de coisas em uma pessoa só e a sua ética tem que perpassar a sua vida pessoal, a sua vida profissional, social, na Igreja onde que você participa, no grupo de amigos que você tem… Tudo!
Para alguns, questão resolvida, para outros, continuam os dilemas éticos, calcados na dinâmica da produção jornalística, conjugada a uma precarização do trabalho, em que o jornalista precisa se submeter a distintos ambientes profissionais em busca de uma remuneração digna. Como fala o profissional 10.
Uma discussão que não dá pra gente determinar como uma questão à priori. Tem que ver cada caso. Cada caso tem que ser analisado de forma diferenciada. Têm princípios básicos de postura profissional, posturas basilares que a gente tem que seguir. Mas existe uma coisa chamada realidade, existe uma coisa chamada cotidiano, rotina. Muitas vezes, na sua rotina, você vai se deparar com questões onde você não sabe o que fazer. Para o pessoal que fez pré-produção comigo, eu citei essa questão. Durante seis meses, eu fui assessor de manhã [de um deputado] e de tarde de um sindicato [de servidores públicos]. Na época [da discussão] da Reforma da Previdência, de manhã eu elogiava a Reforma da Previdência e à tarde eu criticava. Eticamente, eu me vi na seguinte situação: quem estava com a verdade? Os dois estavam. A Reforma da Previdência era uma coisa necessária, tinha várias questões que eram importantíssimas. A previdência de fato ia quebrar. Os servidores tinham também vários pontos dos quais eles não podiam abrir mão, se não eles iam acabar sendo prejudicados. Não era uma questão para você tomar um lado. Os dois tinham seus pontos positivos e os dois tinham seus pontos negativos.
O que, de certa maneira, facilitou o equilíbrio entre as duas funções exercidas pelo profissional foi a sua própria indefinição em torno do assunto tratado por sua produção jornalística. O que pode se mostrar uma atitude cômoda quando se apresentam os dilemas éticos.
Nessa questão específica, eu suportei ficar fazendo isso porque, embora fosse um dilema pra eu trabalhar do ponto de vista da informação, eu nunca consegui fechar a questão na minha cabeça sobre quem estava certo ou errado. Nunca consegui. Seria muito difícil para mim [se alguém dissesse] ‘o profissional 10 vai decidir sobre essa questão da Reforma da Previdência’. Eu [não ia] fechar a questão. Quem fechava a questão contra ou quem fechava a questão a favor, dificultava o processo. (…) Eu acho que só foi possível trabalhar dessa forma porque, de fato, nunca se conseguia chegar a um entendimento definitivo sobre quem estava certo e sobre quem estava errado. Porque, como eu falei para vocês, ambos tinham posições coerentes e ambos tinham posições problemáticas.
Mas outra dimensão também é suportada nessa discussão. A percepção que vincula uma compreensão da ética universal aplicada à ética profissional. Como se subexistisse uma ética profissional derivada da ética universal, e que não se confunde com a ideia de moral. Então, haveria diversas ‘éticas’, para cada uma das profissões. Como nos coloca a profissional 11.
A ética jornalística é a mesma, para todos. Pra tudo que eu for fazer. Até se eu for plantar bananeira em qualquer programa, a ética jornalística é uma só [rir]. Eu carrego ela comigo. Eu sou jornalista. Como o médico em qualquer canto do mundo ele vai ter a ética médica dele. Não tem como fugir, entendeu? Então para todos os programas… Por exemplo, são três programas [em que a profissional trabalha] porque têm caras diferentes, né? Um de entretenimento, um jornalístico e o outro que é um programa policial. Pra todos eles eu levo a mesma ética jornalística, entendeu? Então jamais eu vou falar dos banheiros públicos e vou simular uma ida ao banheiro, como eu já vi e repudio assim esse tipo de atitude. Profissionalmente falando, eu não concordo. Eu não vou fazer isso. Respeito quem faz. Tranquilo, na boa. Mas eu não vou provocar esse tipo de situação, entendeu?
A mesma profissional incorpora outro aspecto à discussão sobre ética profissional. Quando faz uma distinção entre ética profissional e técnicas específicas da produção jornalística. E exemplifica quando de sua rotina de trabalho na TV em três programas distintos, com características diferenciadas.
Agora para cada um tem a sua linguagem. Aí é diferente. Tipo: No programa 1 já é aquela coisa mais leve. Pelo horário. Pelo tipo de gente que está assistindo. O que é que aquelas pessoas querem? O que é que elas querem ver? Pra eu dar mais ou menos essa correspondida. Eu faço aquela gracinha, converso. Como se eu tivesse lá no quintal da minha casa. No programa 2 já é aquela coisa mais leve. Eu danço. ieeeeeeeeeeí. Dou uns gritinhos ieeeeeei e tal… Já danço com o povo, já brinco com os cinegrafistas e por aí vai. Rio bem muito, cacacacacá, e dou gargalhadas que não dou no programa 1. E no programa 3, até o timbre da voz muda, né? Fica mais grave, a dinâmica da leitura já muda, o comentário já é outro… Por causa dos públicos, sabe?
Mas é exatamente pela atuação dos meios de comunicação que Oliveira (1993, p. 10) vai defender o princípio de uma ética universal. Na sua percepção, pelas características atuais, “a ética tem que ser pensada enquanto universalidade, porquanto a organização da sociedade em trocas planetárias, culturais. E isso tem a ver com os meios de comunicação”. Oliveira coloca, aqui, a compreensão da ética como percepção filosófica ancorada no universal, o que se aproxima da ideia de alguns autores que veem a ética como totalidade. Ou do jornalista Cláudio Abramo e sua ética do marceneiro[1]. Outra discussão possível é sobre a relação entre a universalidade do conceito de ética e a pretensa universidade da disseminação e do poder uniformizante dos meios de comunicação, incluindo a vertente da potencialização dos meios pelas novas tecnologias. Mas essa visão lança um desconcertante desafio para os defensores de uma política de controle do conteúdo veiculado pelos meios de comunicação. Se há razões para se crer numa ética planetária, como defender uma ética específica dos meios de comunicação?
Se há os que enxergam uma superposição entre uma pretensa ética universal e a ética a ser seguida pelo profissional jornalista, embora condicionada pela dinâmica do trabalho jornalístico, outras posturas apontam para uma diferenciação. Mas, nesse caso, a diferenciação esbarra em outra superposição, a que se aplica a uma mesma percepção entre ética e moral. E instaura o relativismo, como se existissem ilimitadas ‘éticas’. Afirmação do profissional 6.
Existe sim, evidentemente [diversas éticas]! Por exemplo, se você pegar um político, ele vai dizer que determinadas praticas suas são éticas. É como a verdade, relativa. Isso tudo é bíblico até. No julgamento de Jesus, Pilatos questionou: ‘o que é a verdade?’ [o entrevistado se refere ao texto bíblico do Evangelho de São João 18.38]
3.3 A ética jornalística e o mercado
Até aqui, vimos como os profissionais jornalistas apreendem o conceito de ética. Como o conceito de ética se interpõe ao conceito de moral. E como ambos os conceitos são apropriados na dinâmica da produção jornalística, a partir dos dilemas éticos que volta e meia se apresentam às situações da prática. Mas outro aspecto, para além da produção jornalística, está relacionado à apreensão e aplicabilidade do conceito de ética. Esse aspecto dá conta da relação entre ética jornalística e mercado. Em que medida o mercado dita a compreensão de ética pelos profissionais jornalistas? Em que medida esse conceito é ‘flexibilizado’ para incorporar as orientações vindas do mercado?
O profissional 4 inicia essa discussão. Para ele, o “diretor, editor do jornal sempre tem que se preocupar em atender a um público. Ache ele ruim ou não. Ele está no mercado, tem um jornal e precisa vendê-lo. Então, ele tem que ver o que o público quer”. E, mais, embora compreendendo a ética como algo que não possa ser relativizado, transfere o peso da responsabilidade da transgressão ética no consumidor da informação.
Não. A ética existe em todos os lugares. Eu tenho que ser ético independente de estar na Europa, Estados Unidos, Rússia, Brasil. O nosso problema é que nós enxergamos as tragédias como algo normal – isto na minha visão – por conta dos programas que nós temos, do que vemos todo dia na TV. Agora falando de pesquisas, as matérias mais lidas na internet… Primeiro, segundo e terceiro lugares são de Polícia; quarto, quinto e sexto são de Esporte [futebol]. Sempre tem essa sequência. O Jornal Nacional todo dia tem que abrir com notícia policial, senão não tem audiência. Lá eles não têm essa coisa de mostrar a tragédia e a gente, aqui, faz isso direto. Constantemente.
As estratégias de mercado para o financiamento da produção jornalística têm se diversificado. A Agência Pública, grupo de jornalistas brasileiros que se dedicam ao jornalismo investigativo, tem trabalho via apoio de ‘crowdfunding’, ou financiamento coletivo por voluntários que se credenciam, e fazem suas doações, junto a sites especializados. Como a ética se relaciona a essa nova estratégia, defendida por ser credora de mais independência à produção do Jornalismo?
O profissional 6 trabalha em um blog que recebe ‘doações’ dos internautas que aceitam custear linhas de produção jornalística mais investigativas. Frente á indagação se fosse constatado que o dinheiro da doação fosse escuso, proveniente de alguma atividade ilícita, ou, por exemplo, de alguma empresa que quisesse derrubar uma concorrente, vocês receberiam? A respota é taxativa e sem titubeio: “– Receberíamos!” E mais uma vez o interesse público da informação sugere uma justificativa ao processo de ‘flexibilização’ da percepção ética.
Você pode até questionar se isso é ético ou não. Desde que tudo o que fosse publicado fosse estritamente verdadeiro e estritamente jornalístico, eu não vejo problema algum. E tudo isso ainda gera outro questionamento também: seria ético abdicar de informar, abdicar de dar o direito das pessoas à informação, por conta disso?
Ou seja, em toda a esfera da discussão ética vai reaparecer sua dimensão subjetiva, porquanto o “ético emerge na interação de sujeitos”, como afirma Oliveira (1993, p. 19). Mas, ao mesmo tempo que subjetiva, “aponta para a superação de qualquer particularismo: só se pode falar propriamente de norma moral quando se leva em conta a pretensão de validade universal. O ético diz respeito a um espaço de possível reconhecimento recíproco entre sujeitos de igual dignidade”.
Essa é a mesma discussão que se coloca quando da utilização de artefatos tecnológicos para a obtenção da informação. A câmara oculta e o microfone escondido, por exemplo, seriam passíveis de utilização se a informação a ser obtida fosse determinante para o bem estar da sociedade, que validaria a dimensão subjetiva da ética. O próprio código de ética do jornalista brasileiro é vago em relação a isso, estabelecendo que tais equipamentos somente possam ser utilizados quando esgotadas todas as outras possibilidades de obtenção da informação, o que gera um teor de claros contornos subjetivos à prescrição.
Essa orientação reforça o entendimento do profissional 12, que tem uma compreensão ortodoxa em torno da relação entre ética e produção do Jornalismo. E o que estaria por trás do ‘deslize’ ético, condicionado à ação de mercado propugnada pelas empresas de comunicação.
Eu tenho maior dificuldade em ver isso ai. Porque o deslize ético, pra mim, tá muito mais ligado e presente na incompetência da apuração, na imprecisão da notícia. No entanto, ninguém considera isso deslize ético. E é um deslize ético grave porque causa um dano moral. Por exemplo, alguns jornais do Ceará não publicam o nome de algumas áreas. Assassinato em shopping, não sai o nome do shopping no jornal. Por que não sai? Roubo em shopping, não sai o nome do jornal. Eu vou dar um exemplo aqui. Mataram uma funcionária da reitoria no Shopping Benfica. Não saiu o nome do shopping nas coberturas dos jornais. Teve um assalto no Iguatemi. Não publicaram o nome do shopping. Os jornais não publicaram. O Povo não publicou. O Diário não publicou. Isso é um deslize ético ou uma decisão da empresa para não contrariar negócios ou não constranger o anunciante? Não sei. Vai entrar contra o jornalista ou contra a empresa? Eu acho que a maioria dos deslizes éticos não é problema do repórter, do jornalista. São muito mais questões da empresa. E o grave deslize ético do jornalista é quando ele promove um dano moral. Quando ele induz o jornal a publicar um erro. Um erro de apuração. Isso é um dano. Isso é ético? Tudo bem, é uma falha técnica. Mas esse erro técnico implica um erro ético? Eu acho que implica. Por exemplo, um cirurgião que faz a incisão errada num paciente, que vai operar um órgão e opera outro. Foi um erro técnico. É um erro ético gravíssimo. Ele é caçado pelo Conselho [de Medicina]. O Conselho de Medicina vai abrir um processo contra ele, entendeu? Então a maioria dos casos tem origem muito mais de técnica do que em outra coisa. Agora, os grandes deslizes são deliberados e determinados pela empresa. Por exemplo, eu lembro quando uma grande rede de varejo do Ceará quebrou, pediu concordata, nenhum jornal do Ceará publicou. A Rede Paraíso. Quem publicou foi a Gazeta Mercantil. E a gente sabia. A redação sabia. Todo mundo sabia. A cidade sabia. E os jornais locais não publicaram. Certo? Eu poderia dar muitos exemplos, mas alguns eu não posso dar porque vão agredir algumas pessoas e tal.
Mas o profissional 12 é proprietário de uma editora que produz uma revista de informação. Será que na sua empresa de comunicação essa ‘heterodoxia’ na produção do Jornalismo também acontece? Será que seu conteúdo editorial sofre as consequências da ingerência do mercado? “Mesmo na minha revista (risos), você vai fazer coisas que você achou que você não faria. Mas aquilo vai ser dentro de uma normalidade conjuntural. Se você se violentar, não faz. Pede pra sair.” Então, cada um teria sua ética? De acordo com o que a pessoa se propôs?
A ética da pessoa está na tua casa, na tua escola e no teu trabalho. É a mesma ética. A grande falha das pessoas são questões morais, de constrangimento no trabalho, de constranger um colega, de ser constrangido pelo chefe, de ser exposto publicamente por algum problema, de ter tua imagem publicada no Youtube, por exemplo. É uma questão moral.
O senhor pode diferenciar heterodoxia e falta de ética?
Heterodoxia são métodos não convencionais. Falta de ética é um juízo de valor que as pessoas podem fazer numa dada conjuntura. Eu prefiro usar a expressão heterodoxia. E você pode dizer: “Pô, esse cara não tem ética nenhuma!”. E eu vou responder: “Eu sou jornalista!”
4 Perspectivas de outras discussões
As insinuações que fizemos aqui atestam que o Jornalismo está passando por muitas transformações. Mas a tecnologia não influencia decisivamente o conceito de ética que acompanha os jornalistas. Com as transformações, velhos dilemas éticos são reforçados, enquanto que outros vão surgindo. Muitas dúvidas sobressaem, mas uma certeza parece organizar esse aparente caos: a de que novos dilemas éticos, em torno da produção do Jornalismo, estão por vir. E o que esses novos dilemas sugerem? Para Kucinsky (2004, p. 24), nesse novo ambiente, “(…) as éticas socialmente constituídas cederam espaço a uma ética definida em torno de cada indivíduo, o que parece uma contradição em termos, um paradoxo, já que as condutas pessoais só podem ser avaliadas na sua articulação com outras condutas”. Cada indivíduo, “(…) nesses tempos pós-modernos, teria a faculdade de decidir sua própria conduta, cultivar seus próprios valores. É o retorno a mais primordial de todas as discussões éticas: a da possibilidade ou não de haver uma ética”. Estaríamos fadados a conviver com éticas ‘individuais’? No Jornalismo, como conciliar responsabilidade social da profissão, em que emerge uma compreensão coletiva no processo, com éticas individuais?
Cada vez mais devemos relembrar Goodwin (1993) e suas desconcertantes perguntas quando nos deparamos diante de dilemas que se assomam éticos para nós, embora essas mesmas perguntas já devam ser pensadas sob esse outro ambiente de produção do Jornalismo que começamos a vivenciar: 1) o que é que nós fazemos habitualmente em casos como esse? 2) quem será prejudicado e quem será ajudado? 3) existem alternativas melhores? 4) poderei me olhar de novo no espelho? 5) poderei justificar isso perante as pessoas e o público? 6) quais os princípios e os valores que devemos aplicar? 7) Será que essa decisão se encaixa no tipo de jornalismo que eu acredito?
Esperamos poder dar nossa contribuição para esses diálogos trazendo como subsídio a vivência de nossos entrevistados, que tão bem apontam a relação entre produção do Jornalismo e ética profissional. São eles que no cotidiano de seu trabalho se fazem essas perguntas constantemente. E sem a participação deles, o debate pode se tornar estéreo e vazio. Como vazios se tornam nossos argumentos cada vez que nos deparamos com outras situações em que a relação ética e Jornalismo é posta em confronto.
About the Author
Edgard Patricio is a professor of the Graduate Program in Communication, Federal University of Ceará, Brazil.
Referências bibliográficas
BOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca de fundamentos. 5. Ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 2009;
CAMARGO, Marculino. Fundamentos de ética geral e profissional. 5. ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 2004;
CHRISTOFOLETTI, Rogério. Ética no jornalismo. São Paulo: Contexto, 2008;
COSTA, Caio Túlio. Ética, jornalismo e nova mídia – uma moral provisória. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009;
GOODWIN, H. Eugene. Procura-se: ética no jornalismo. Rio de Janeiro: Nórdica, 1993;
KUCINSKI, B. Jornalismo na era virtual. São Paulo: Ed. Fund. Perseu Abramo, 2004;
OLIVEIRA, M. A. Ética e racionalidade moderna. São Paulo: Loyola, 1993.
[1] Em A Regra do Jogo, Cláudio Abramo vai afirmar: “Sou jornalista, mas gosto mesmo é de marcenaria. Gosto de fazer móveis, cadeiras. E minha ética como marceneiro é igual à minha ética como jornalista –não tenho duas. Não existe uma ética específica do jornalista. Sua ética é a mesma do cidadão. Suponho que não se vai esperar que, pelo fato de ser jornalista, o sujeito possa bater carteira e não ir para a cadeia.
Onde entra a ética? O que o jornalista não deve fazer que o cidadão comum não deva fazer? O cidadão não pode trair a palavra dada, não pode abusar da confiança do outro, não pode mentir. No jornalismo, o limite entre o profissional como cidadão e como trabalhador é o mesmo que existe em qualquer outra profissão. É preciso ter opinião para poder fazer opções e senso crítico para julgar qualquer outra coisa. O jornalista não tem ética própria. Isso é um mito. A ética do jornalista é a ética do cidadão. O que é ruim para o cidadão é ruim para o jornalista”.