This paper was presented at the Global Investigative Journalism Conference in October 2013 in Rio De Janeiro.
Learning to be Guided by Data: The Training of Journalists Team Estadão Data
By Marcelo Träsel
Abstract (translated)
The article presents the partial results of over 50 hours of non-participant observation of the routines of the first team of data -driven journalism ( JGD ) formed in the Brazilian press : journalists and programmers responsible for publishing Estadão data, from the newspaper O Estado de São Paul . The observations are complemented by interviews with team members and by document analysis , following the suggestion of Singer (2011 ), for an ethnographic approach including a triangulation of information sources. The focus of the material collected is based on identity, cultural and biographical factors that led these journalists to learn the techniques of JGD and act professionally in this specialty. Hamilton and Turner (2011 ) define computational journalism as “a combination of algorithms, data and knowledge of the social sciences with the aim of promoting the supervisory function of journalism.” The JGD is understood here as a type of computational journalism in which the production of journalistic narratives has databases as its primary source of information. This paper identifies some of the key identifying features common to the reporters involved in the practices of JGD and how these traits relate to the professional identity of journalists, with the aim to outline strategies for teaching these techniques at universities and newsrooms.
Aprendendo a se deixar guiar por dados: a formação dos jornalistas da equipe Estadão Dados
Marcelo Träsel
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Resumo
O artigo apresenta os resultados parciais de mais de 50 horas de observação não-participante das rotinas da primeira equipe de jornalismo guiado por dados (JGD) formada na imprensa brasileira: os jornalistas e programadores responsáveis pela editoria Estadão Dados, do jornal O Estado de São Paulo. A observação está complementada por entrevistas com os membros da equipe e análise de documentos, seguindo a sugestão de Singer (2011) para uma abordagem etnográfica que inclua uma triangulação de fontes de informações. O enfoque sobre o material coletado se detém nos fatores identitários, culturais e biográficos que levaram estes jornalistas a aprender técnicas de JGD e a atuarem profissionalmente nesta especialidade. Hamilton e Turner (2011) definem jornalismo computacional como “a combinação de algoritmos, dados e conhecimento das ciências sociais com o objetivo de fomentar a função de fiscalização do jornalismo”. O JGD é compreendido, aqui, como um tipo de jornalismo computacional no qual a produção de narrativas jornalísticas tem nas bases de dados sua fonte primária de informação. Este trabalho identifica alguns dos principais traços identitários comuns aos repórteres envolvidos nas práticas de JGD e como esses traços se relacionam com a identidade profissional jornalística, com o objetivo de delinear estratégias para o ensino destas técnicas em universidades e redações.
Palavras-chave: Jornalismo guiado por dados; Estadão Dados; Educação; Observação participante; Reportagem Assistida por Computador
Introdução
A partir do final dos anos 2000, as práticas de Jornalismo Guiado por Dados (JGD) estavam em vias de não apenas se estabelecer nas redações da América do Norte e Europa, mas haviam se tornado a principal estratégia de grande parte da imprensa para a recuperação da audiência, que vem sendo perdida constantemente há décadas. Pode-se argumentar que, hoje, o jornalismo guiado por dados “está na moda”.
O JGD parece se colocar, do ponto de vista dos jornalistas, como um conjunto de práticas capazes de libertá-los do jornalismo declaratório, isto é, da dependência de autoridades e outras fontes para fornecer informações. Para Parasie e Dagiral (2013), com efeito, as formas contemporâneas de jornalismo de dados se assentam sobre a promessa de uma mudança profunda nas relações entre os jornalistas e suas fontes – promessa que, entretanto, é cumprida apenas em parte, na medida em que as bases de dados usadas pelos repórteres são em geral produzidas pelas mesmas instituições cujos porta-vozes os jornalistas costumam entrevistar. O poder sobre a informação, portanto, segue nas mãos de autoridades. Outras três motivações secundárias para a adoção do JGD nas redações atuais seriam as seguintes: a) a ampliação do número de fontes disponíveis, através do processo de comunicação horizontal permitido pela Internet e pela publicação de bases de dados por parte de organizações; b) a desconexão entre a informação e as estratégias de relações públicas das organizações produtoras dessa informação, uma vez que os dados podem ser acessados e analisados diretamente pelos repórteres; e c) a redução dos custos de investigações, pois torna-se desnecessário deslocar jornalistas por grandes períodos de tempo para averiguar arquivos e os softwares disponíveis, além de serem muitas vezes gratuitos, permitem realizar as análises de maneira mais eficaz (Parasie e Dagiral, 2013, p.58).
Um exemplo de como essas promessas têm sido recebidas pela cultura jornalística pode ser visto na manchete de 11 de janeiro de 2009 da New York Magazine, que trazia na capa o título “O novo jornalismo” e, em seu interior, uma foto de duas páginas de cinco membros dos setores de Tecnologias para Redação Interativa, gráficos e multimídia do jornal The New York Times, acompanhada do subtítulo “O que estes cybergeeks renegados estão fazendo no New York Times? Talvez o salvando” (Nussbaum, 2009). A matéria conta a história da formação do grupo de Tecnologias para Redação Interativa dentro da organização, cujos membros, liderados por Aron Pilhofer, são classificados na reportagem como “nerds”, “desenvolvedores/repórteres ou repórteres/desenvolvedores” e “cybergeeks”. O New York Times é uma das maiores e mais respeitadas empresas de jornalismo do mundo e, para além do sucesso mercadológico, pode ser considerada a própria encarnação da cultura e da mitologia da profissão. A manchete em questão pode ser compreendida como uma aposta pública do jornal nas tecnologias digitais e, em específico, nas práticas de JGD. Aposta que não passou despercebida pelo restante da imprensa mundial, cujo interesse em Jornalismo Guiado por Dados (JGD) vem crescendo desde então.
Além da popularização das ferramentas para o desempenho destas práticas e do apelo comercial de visualizações de dados e outros produtos relacionados ao JGD, uma segunda razão importante para a emergência desta especialidade na cultura jornalística pode ser a adoção de políticas de acesso à informação e transparência por governos de todo o mundo. Conhecidos como políticas de “dados abertos” (open data) ou “transparência pública” (open government), estes mecanismos inundaram a Internet nos últimos anos com bases de dados outrora muito difíceis de se obter. Em maio de 2012, a Presidência da República sancionou a Lei nº 12.527, conhecida como Lei de Acesso à Informação, que obriga todos os órgãos públicos brasileiros a divulgar dados administrativos e a atender a solicitações de informação qualquer cidadão. Por outro lado, serviços online como Google Drive, Infogr.am, DocumentCloud e CartoDB, apenas para citar alguns, permitem construir, organizar e analisar bancos de dados, gratuitamente ou a um custo muito baixo, bastando um computador e habilidade com a língua inglesa para usá-los. Estes dois fatores, aliados à disseminação de experiências com JGD na Europa e Estados Unidos, coincidem com o reavivamento do interesse da imprensa brasileira pela aplicação de técnicas computacionais na produção de notícias.
No Brasil, existem cada vez mais jornalistas se preparando para atuar nesta especialidade, além dos veteranos da RAC dos anos 1990. Um dos principais indícios deste interesse foi a criação do Estadão Dados[1], uma equipe dedicada apenas ao JGD na redação de O Estado de São Paulo (Estadão), pioneira no Brasil, e sobre a qual recai o foco deste artigo. Em específico, interessa aqui compreender quais abordagens de aprendizado seus integrantes adotam para assimilar as técnicas de JGD, na esperança de que sua experiência possa servir de modelo para outras redações e para o ensino de jornalismo nas universidades. As respostas apresentadas neste artigo são derivadas principalmente de um período de observação participante junto da equipe Estadão Dados, realizada no contexto mais amplo de uma pesquisa de doutorado atualmente em desenvolvimento pelo autor.
O jornalismo guiado por dados
Atualmente, os jornalistas passam a, cada vez mais, assumir também o papel de técnicos, ao deixarem de delegar a operação de hardware e software para especialistas e passarem eles mesmos a assumir a operação dessas tecnologias.
By 1991, Meyer argued in the second edition of his book that journalists interested in CAR were their own breed of reporters, who often bought their own computers in advance of newsroom technology. […] However, the computer-assisted reporter was still primarily a journalist rather than a technologist; the underlying goal was to produce a better story. Today, however, the programmer-journalist differs from this CAR reporter in seeing the end product not as a story but instead as a ‘productive artifact’ of ‘information filtering’. (Lewis e Usher, 2013, p.605)
A partir desta percepção, Lewis e Usher (2013) consideram o JGD uma fusão das ciências da computação e jornalismo, a partir da qual os programadores começam a assumir a centralidade nas redações e participar ativamente da elaboração de formatos jornalísticos como visualizações de dados, aplicativos, algoritmos de geração e recomendação de notícias, entre outros tipos de peças noticiosas derivadas da informática. Parasie e Dagiral (2013) seguem numa vertente semelhante, argumentando que os projetos de JGD dentro das redações repousam sobre o tratamento, análise e visualização de dados relacionados a uma grande variedade de domínios, como criminalidade, demografia, transportes, infraestrutura, orçamento público, meio ambiente, entre outros, e aos agentes sociais responsáveis pelo gerenciamento de ações governamentais nestas áreas, como políticos, a respeito dos quais se busca levantar informações sobre financiamento de campanhas, uso de verbas, votos, ou projetos de lei apresentados, por exemplo) em todas as esferas administrativas. Estes dados são reunidos então em “programmes informatiques qui sont présentés comme constituant intrinsèquement des produits journalistiques” (Parasie e Dagiral, 2013, p.53).
Lima Jr. (2011), Anderson (2012), Diakopoulos (2012) e Lewis e Usher (2013) preferem usar a expressão “jornalismo computacional”, proposta por Cohen, Hamilton e Turner (2011), em lugar de jornalismo guiado por dados. O jornalismo computacional seria, inicialmente, “changing how stories are discovered, presented, aggregated, monetized, and archived” (Cohen, Hamilton e Turner, 2011, p.1). A computação, nesse caso, é vista como um fator de evolução do jornalismo, permitindo inovações como detecção automática de tópicos na rede mundial de computadores, análise de vídeos, personalização, agregação, visualização e produção de sentido. Num estudo anterior, porém, Hamilton e Turner definem o jornalismo computacional como o uso de “algorithms, data and social science to supplement the accountability functions of journalism” (Hamilton e Turner, 2009, p.2). A diferença entre o conceito de jornalismo computacional e JGD, entretanto, não fica clara nos estudos destes pesquisadores. As práticas atribuídas a ambos os conceitos se sobrepõem frequentemente. Considerando-se, porém, o alerta de Meyer (1991) sobre o foco excessivo na tecnologia e sua lembrança de que o aspecto mais importante da RAC é o conhecimento gerado, não as ferramentas usadas na geração deste conhecimento, pode-se argumentar que a expressão “jornalismo guiado por dados” apresenta a vantagem semântica de direcionar a atenção para os resultados jornalísticos do processo, em detrimento da preocupação com a tecnologia em si mesma.
A partir das noções expostas acima, o conceito de JGD com o qual se trabalha neste artigo pode ser definido da seguinte forma: o jornalismo guiado por dados é a aplicação da computação e dos saberes das ciências sociais na interpretação de dados, com o objetivo de ampliar a função da imprensa como defensora do interesse público.
Metodologia e resultados
O Estadão Dados é um setor da redação do jornal paulistano O Estado de São Paulo (Estadão), criado em maio de 2012 e composto até julho de 2013 por quatro profissionais, três jornalistas e um programador. No quadro abaixo estão descritos o perfil e as atribuições de cada um deles:
QUADRO 1
Perfis da equipe Estadão Dados
Indivíduo | Função | Biografia |
Coordenador | Decisão sobre as pautas a serem perseguidas; intercâmbio com outras editorias, setores do Estadão e instituições externas, como institutos de pesquisa; análise de dados; redação de matérias e colunas de opinião; atualização do weblog. | Natural de São Paulo (SP), casado, 47 anos, sem filhos, jornalista profissional, fez carreira na editoria de política de grandes jornais brasileiros, já foi proprietário de uma agência de produção de contéudo, trabalha com Reportagem Assistida por Computador desde os anos 1990. |
Repórter 1 | Coleta, limpeza, análise e visualização de dados, em especial mapas; apuração e redação de matérias, inclusive para a editoria de política; atualização do weblog. | Natural de Passo Fundo (RS), 45 anos, dois filhos, jornalista profissional, fez carreira como repórter em jornais e publicações digitais de Porto Alegre e São Paulo, adotou o computador como ferramenta de trabalho ainda no início dos anos 1990. |
Repórter 2 | Coleta, limpeza, análise e visualização de dados; apuração e redação de matérias; atualização do weblog; destaca-se pela habilidade em webscraping. | Natural do interior de Minas Gerais e criada em Maringá (PR), 26 anos, sem filhos, solteira, jornalista profissional, atuou como jornalista free-lancer e repórter de publicações digitais; produziu dois projetos de jornalismo cidadão em cidades do interior do Brasil; deixou o Estadão Dados logo após o período de pesquisa para se dedicar a um livro-reportagem. |
Programador | Coleta, limpeza, análise e visualização de dados; desenvolvimento de aplicativos; atualização do weblog. | Natural de São Paulo (SP), 28 anos, sem filhos, solteiro, estudante de Engenharia da Computação, faz parte de um grupo de desenvolvimento de F/OSS e de grupos de hackers interessados em acesso a dados públicos. |
Em 30 de abril de 2013, foi realizada uma visita à redação de O Estado de São Paulo, com o objetivo de estabelecer contato com a equipe e negociar um período de observação. Entre 22 e 31 de julho de 2013, foi realizada a observação não-participante na redação. O período de observação participante totalizou mais de 50 horas de acompanhamento do cotidiano da equipe Estadão Dados. O acesso foi autorizado pela empresa mediante contato prévio com o coordenador da equipe e formalizado numa carta com a qual foi possível entrar no prédio e circular por suas dependências entre os dias 22 e 31 de julho de 2013.
O Estadão Dados ocupa uma sala própria, anexa à redação e separada desta por uma divisória de vidro – espaço que, seguindo o costume das redações brasileiras, os outros jornalistas da empresa e seus próprios ocupantes denominam “aquário”. No aquário, bastante exíguo, há duas mesas ocupadas por computadores e quatro cadeiras, além de uma cafeteira. Apenas a Repórter 2 e o Programador trabalham nesta sala em tempo integral. O Coordenador costuma chegar na redação durante a tarde e permanecer até o início da noite. O Repórter 1 é oficialmente repórter da editoria de Política do Estadão, realocado pela direção do jornal à equipe de JGD, então ocupa sua própria mesa no espaço reservado àquela editoria e transita entre os dois espaços quando se faz necessário.
O Estadão Dados foi proposto por iniciativa pessoal do Coordenador, que desde 2009 atuava como colunista político do jornal, focando-se principalmente em interpretação de pesquisas de opinião pública. Após a participação no 13º Simpósio Internacional de Jornalismo Online, evento anual promovido na Universidade do Texas pelo Centro Knight para o Jornalismo nas Américas, no qual assistiu a palestras e painéis sobre JGD nos quais jornalistas e programadores de jornais de todo o mundo expuseram as práticas e produtos criados em seus veículos, Coordenador propôs à direção do Estadão replicar estas experiências no Brasil. A equipe foi montada a partir da realocação de vagas da editoria de política, da editoria de arte e do website Estadão.com.br.
Conforme Coordenador, o Estadão Dados tem como objetivo publicar pelo menos um gráfico, infográfico, mapa ou outro tipo de visualização de dados por dia em seu weblog. O weblog é dividido em três seções: “gráfico do dia”, em que são publicados gráficos sobre assuntos variados, “permanentes”, na qual podem ser encontradas séries de dados atualizadas periodicamente, como níveis de satisfação popular com o governo federal, por exemplo, e “séries especiais”, destinada a temáticas específicas, como transportes ou criminalidade.
Na sala ocupada pelo Estadão Dados, foram cedidas ao pesquisador uma cadeira e uma mesa próximas da porta. O diário de campo foi mantido num caderno, com anotações para cada dia de observação. Foi possível presenciar discussões de pautas e enfoque de matérias, debates para solucionar problemas técnicos, conversas informais e intercâmbios entre a equipe Estadão Dados e outros membros da redação do jornal. As atividades profissionais dos informantes se davam principalmente em computadores e pôde-se acompanhar o uso de programas de tratamento, análise e visualização de dados pelo grupo.
Entre novembro de 2012 e agosto de 2013, foram realizadas também entrevistas com outros 14 informantes que desempenham práticas de JGD em seu cotidiano profissional, ou tiveram papel importante na disseminação da RAC e do JGD no Brasil. Além da observação participante na redação de O Estado de S. Paulo e das entrevistas, os resultados apresentados neste artigo são derivados da participação do pesquisador nas listas de discussão por correio eletrônico “Data-Driven Journalism”, administrada pelo European Journalism Centre; e “Abraji”, gerenciada pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, nas quais o jornalismo guiado por dados é um tópico constante. Outra fonte de dados importante nesta pesquisa são websites e weblogs dedicados ao tema do JGD, descobertos através de pesquisa bibliográfica e de uma iniciativa de crowdsourcing que resultou numa base de dados que, até setembro de 2013, contava com mais de cem registros[2]. Estas fontes são ricas em exemplos de reportagens guiadas por dados, tutoriais de técnicas de apuração, análise e refinamento de dados, uso de ferramentas, bem como discussões conceituais a respeito do JGD.
A partir das fontes de dados listadas acima e da análise de manuais de RAC e JGD publicados a partir dos anos 1970 (Meyer, 1973; DeFleur, 1997; Houston, 1999; Gray, Chambers e Bounegru, 2012; Rogers, 2013), pôde-se concluir que a principal estratégia de aprendizado dos jornalistas interessados em adentrar esta seara da atividade profissional é o autodidatismo amparado por recursos disponíveis na Web e cursos de curta duração ministrados por especialistas em RAC e JGD.
Uma das formas mais relevantes de assimilação de conhecimento prático sobre RAC e JGD parece ser a relação de aprendizado estabelecida entre um jornalista novato e um veterano nestas práticas. A informante Repórter 2, que está na faixa etária entre 25 e 30 anos, relatou ter tido seu primeiro contato com este conjunto de técnicas ao atuar como estagiária na agência de produção de conteúdo da qual o Coordenador fora sócio. A empresa tinha como um de seus clientes o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), para quem editaram o Relatório de Desenvolvimento Humano no Brasil lançado em 2005 e cujo website gerenciavam. Segundo a Repórter 2, suas primeiras experiências com o JGD ocorreram neste contexto e foram fundamentais para sua contratação pelo Coordenador para integrar o Estadão Dados. De fato, pelo menos dois outros praticantes de JGD entrevistados nesta pesquisa afirmaram ter tido seu primeiro contato com o JGD durante estágios na mesma agência. Três outros informantes atuaram na organização Transparência Brasil, onde também receberam treinamento nestas técnicas. Fica clara a importância das organizações como disseminadoras das práticas de JGD.
A Repórter 2 divide os candidatos a repórteres guiados por dados entre os que se interessam primordialmente por desenvolvimento de software e aqueles cujo foco é “extrair a notícia dos números”, atividade que atribui ao campo da RAC. Neste caso, ela recomenda iniciar com a realização de reportagens em texto a partir de bases de dados abertas e aumentar progressivamente a complexidade da análise de dados, aprendendo a usar as ferramentas disponíveis conforme as demandas de cada pauta. Essa abordagem é adotada por outros membros do Estadão Dados, que durante o período de observação participante dedicaram grande parte do tempo de expediente a investigar quais ferramentas apresentavam as funcionalidades exigidas pelas pautas em desenvolvimento.
Em geral, essa investigação se dá pela busca na Internet de documentação oferecida pelos responsáveis por uma determinada ferramenta; pela leitura de discussões em fóruns eletrônicos, alguns dos quais são oficiais, ou seja, hospedados nos próprios websites das ferramentas; ou ainda em guias e tutoriais publicados por outros repórteres em weblogs e publicações focadas em JGD e análise de dados. O processo é descrito na fala do Programador:
Costumo olhar a ferramenta primeiro, ir fuçando, mexendo, testando algumas coisas. Conforme vai surgindo a necessidade de alguma coisa mais elaborada, aí eu vou procurar a documentação, procuro exemplos, mas em geral eu fico nas documentações e exemplos. Quando eu vou aprender uma nova linguagem ou desenvolver um produto, (…) aí eu me debruço muito sobre a documentação da ferramenta ou da linguagem, vou atrás de fóruns das comunidades que desenvolvem usando aquela tecnologia. É uma coisa muito interativa. Procuro os próprios desenvolvedores, ou gente que usa [a tecnologia] e eu conheça.
Já o Repórter 1 relata ter começado a se interessar por JGD quando foi convidado pelo Coordenador a trabalhar na análise de pesquisas eleitorais dentro dos escritórios do Ibope, um das maiores empresas de pesquisas sociais e de opinião do Brasil. A convivência com os estatísticos do Ibope permitiu conhecer melhor os métodos sociológicos e, a partir disso, o informante foi capaz de gerar ideias de pautas usando bases de dados. A necessidade de usar ferramentas de análise de dados no desenvolvimento destas pautas levou o Repórter 1 a aprender a usar planilhas de cálculo, geradores de mapas e outras ferramentas. A partir de sua inclusão na equipe Estadão Dados, o jornalista afirma ter assimilado, aos poucos, o uso diversas novas ferramentas à sua paleta de habilidades.
Entretanto, seu primeiro contato com técnicas de RAC ocorreu nos anos 1990, quando era funcionário da Folha de São Paulo e participou de um dos cursos sobre o tema ministrados dentro da redação. Outra fonte através da qual se informava sobre estas técnicas era o weblog[3] mantido pelo Coordenador, no qual este costumava apresentar guias e tutoriais. Além disso, ao contrário da Repórter 2, por exemplo, que afirma não ter um interesse por tecnologia além do utilitário, o Repórter 1 relata sempre ter procurado usar e se informar sobre tecnologia. Quando trabalhava na Zero Hora no início dos anos 1990, como operador de teletipo, distribuindo as matérias enviadas por agências para as editorias responsáveis, o informante realizou experiências programando atalhos de teclado para aumentar a eficiência do trabalho. Apesar ter comprado seu primeiro computador nesta época, nunca aprendeu técnicas mais aprofundadas de programação e só passou a se interessar por análise de dados a partir de sua experiência no Estadão.
O Coordenador foi um dos pioneiros na adoção de técnicas de RAC nas redações brasileiras. Em 1996, ao deixar sua função como colunista de política na seção “painel” da Folha de São Paulo (FSP), o jornalista imediatamente passou a trabalhar num projeto conjunto com pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que haviam desenvolvido um índice de inclusão e exclusão social a partir de indicadores levantados em cada um dos 96 distritos da cidade de São Paulo. A série de reportagens coincidiu com o início da operação da Internet comercial no Brasil e com a publicação de tabelas do censo de 1991 no website do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. O Coordenador aprendeu a usar o computador para obter essas bases de dados e a realizar análises em planilhas de cálculo, conseguindo a partir desse material produzir uma série de matérias de capa e “furos” para a FSP. Os bons resultados da experiência do Coordenador levaram o jornal a oferecer cursos de RAC para a redação. Na opinião do Coordenador, porém, os benefícios destas aulas foram pouco duradouros por falta de uma disposição ao autodidatismo em grande parte dos alunos, embora tenha sedimentado os princípios do Jornalismo de Precisão (Meyer, 1973) dentro da FSP:
O RAC depende muito de você se aprimorar sozinho. Não basta fazer um curso de uma semana, 15 dias, se não pratica. Não é que nem andar de bicicleta. É como a área de política ou qualquer outra específica do jornalismo: se você não desenvolve as fontes, não aprimora as suas próprias habilidades, não evolui. Eu vi que a taxa de aproveitamento desses cursos era baixa. As pessoas faziam esses cursos uma, duas vezes, e se via pouco resultado no jornal. Mas de qualquer jeito criou uma cultura. A Folha foi o primeiro veículo brasileiro onde se teve uma cultura dos dados, de jornalismo de precisão, criada e implementada.
O Coordenador descreve seu próprio aprendizado como caracterizado por “tentativa e erro”, tanto no que tange à aplicação de conceitos estatísticos, quanto na assimilação da linguagem da informática. O informante afirma que, mesmo antes de iniciar sua trajetória no JGD, costumava se voluntariar para produzir matérias sobre pesquisas do Datafolha e frequentemente solicitava acesso às tabelas originais produzidas pelo instituto, para poder calcular a evolução indicadores e índices. Essa demonstração de interesse permitiu o estabelecimento de uma relação amigável com os estatísticos do Datafolha, que passaram a lhe ensinar os conceitos básicos de matemática. No caso da informática, também, o Coordenador aprendeu adquirindo um computador no início dos anos 1990 e usando-o para acessar bases de dados via protocolo Gopher, bem como analisar esse material em planilhas de cálculo, de forma autodidata. Mais tarde, teve acesso a obras como as de Meyer (1973) e Houston (1997), nas quais pôde refinar sua compreensão conceitual a respeito das práticas que vinha adotando e participou de cursos de RAC na redação da FSP.
Considerações finais
Essa abordagem autodidata do aprendizado é uma das características mais típicas da cultura hacker (Levy, 2010; Coleman, 2013), cujos membros tendem a uma apropriação hedonista da tecnologia, isto é, a uma “perversão” da utilidade planejada pelos fabricantes de hardware e software: “Esta apropriação se dá como um método de improvisação, onde os desvios do uso são responsáveis pelos desenvolvimentos na indústria da informática e por sua popularização” (Lemos, 2002, p. 257). Coleman (2013) define hackers como “computer aficionados driven by an inquisitive passion for tinkering and learning technical systems, and frequently committed to an ethical version of information freedom”. Com a popularização dos microcomputadores e acesso à Internet, a cultura hacker, que formou a base do imaginário relacionado às redes de computadores, disseminou-se para o restante da sociedade (Castells, 1999; Streeter, 2011), levando a todos os usuários de microcomputadores e da Internet, em maior ou menor grau, o espírito faça-você-mesmo.
Compreendendo-se o JGD como uma imbricação da cultura hacker e da cultura jornalística (Träsel, 2013a), pode-se inferir que o autodidatismo demonstrado pelos integrantes da equipe Estadão Dados e outros jornalistas envolvidos nessa especialidade seja um traço adquirido da cultura hacker. Todavia, uma investigação mais ampla e profunda sobre este aspecto específico é necessária para estabelecer uma relação causal entre a consolidação da cibercultura no contexto da era da informação e os hábitos de aprendizagem dos jornalistas praticantes do JGD.
De qualquer forma, esta inferência fornece pistas para esforços educacionais futuros. A estratégia de uso da Web para aprendizagem demonstrada pelos membros do Estadão Dados se enquadra no que Santaella (2004) denomina “leitor previdente”. Este tipo de leitor imersivo se caracteriza pela aplicação do raciocínio dedutivo na busca da informação desejada nas redes de computadores, usando o raciocínio lógico-matemático para calcular a localização provável das fontes de informações necessárias. O navegante previdente usa os esquemas cognitivos gerados por experiências passadas para estabelecer o melhor caminho para a resolução de um problema.
Ao abordar desta forma a busca por soluções para o desenvolvimento de projetos específicos dentro da redação, os jornalistas parecem estar de maneira intuitiva adotando uma estratégia construtivista de aprendizado. Papert (2007) já demonstrou como o ensino orientado a projetos específicos, nos moldes construtivistas, pode fazer emergir o raciocínio dedutivo-hipotético em crianças. Esta senda parece ser promissora em futuros esforços de treinamento e disseminação das técnicas de jornalismo guiado por dados.
Note on the Author
Marcelo Träsel is a lecturer at Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brazil, and creator of the Digital Journalism specialization course at the same university
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